Arte: Pintura de Rosana Della Coletta |
Celi Cavallari[1]
Na
passagem para a terceira década do século XXI fomos surpreendidos pela pandemia
do coronavírus, acontecimento que atravessa a história da humanidade e muda a
rotina do viver humano no planeta. Em plena revolução tecnológica, a maioria
não esperava agora ter o desafio de uma nova epidemia, sem respostas imediatas.
Iniciamos 2021 com quase 200.000 mortos pela COVID
19 no Brasil, segundo os dados oficiais; e, passado o impacto inicial, estamos
entrando em uma nova onda de crescimento do número de pessoas infectadas. As
respostas do poder público foram insuficientes e, por vezes, contraproducentes
para que fossem tomadas medidas preventivas adequadas; e é alto o grau de
sofrimento da população.
Delumeau
no livro A História do medo no Ocidente,[1] observa que a peste impõe
a
“interrupção das atividades familiares, silêncio da cidade, solidão na
doença, anonimato na morte, abolição dos ritos coletivos de alegria e de
tristeza: todas essas rupturas brutais com os usos cotidianos eram acompanhadas
da impossibilidade radical de conceber projetos de futuro, pertencendo a
“iniciativa”, doravante, inteiramente à peste. Ora, em período normal, mesmo os
velhos agem em função do futuro, tal como aquele de La Fontaine que não só
constrói, mas planta. Viver sem projeto não é humano. No entanto, a epidemia
obrigava a considerar cada minuto como um sursis e a não ter outro horizonte
diante de si que não o de uma morte próxima.”
A
falta de perspectiva, a ameaça à vida, a impossibilidade de saber quanto tempo
vai durar, o isolamento social, o descuidado social e a instabilidade nos
colocam em um patamar muito semelhante ao referido por Delumeau.
Para
Freud, quando a adversidade do destino nos atinge, nos deparamos com
sentimentos como angústia, desamparo e culpa, provocados tanto pelo perigo apresentado
na realidade, quanto pela ameaça à nossa identidade.
A
proporção de riscos, de medo, de luto e de dor associada à pandemia pode alcançar
forte intensidade para o psiquismo e ser vivenciada como experiência traumática,
exigindo grandes esforços para garantir o equilíbrio psíquico que é diferente
para cada pessoa e para cada território.
A
pandemia desencadeou rupturas e fomos jogados para uma condição mais regredida.
De repente, ninguém pode sair de casa, houve diminuição de renda, situações de
emergência, de risco e perdemos parte de nossa autonomia. Para as pessoas mais
vulneráveis sem moradia, saneamento, ou que moram em situação de risco, a
impossibilidade de cumprir as consignas preconizadas se traduziu no aumento do
sentimento de desamparo e a diminuição de renda aumentou o risco à vida.
Negar
também não é solução. Os países que fizeram isolamento social rigoroso e
priorizaram ações de cuidado conseguiram resultados melhores em menor tempo,
enquanto aqueles que não fizeram, apresentam maior número de infectados e de
mortes, como é o caso do Brasil.
Quando
a prioridade é da ordem da Saúde, seria importante que as forças políticas
colaborassem e causassem menos stress. Em nosso país, tem ocorrido o oposto,
diariamente recebemos notícias sobre disparidades políticas ou das forças de
segurança que entram em choque com as ações de cuidado.
O
adoecimento e morte continuam crescendo e os protocolos de tratamento e
procedimentos médicos, por vezes, são tratados como se fossem apenas questão
política e não dependessem do conhecimento científico. Parte do mundo iniciou a
vacinação, enquanto no país as providências são lentas e quando governadores,
como no caso de São Paulo, tomam medidas para proteger a região mais populosa
do país, há interferência política federal e a esperança fica cada vez mais adiada.
Esses
embates são mortíferos, as vivências relatadas por pacientes são semelhantes às
situações de guerra, nas quais as pessoas se sentem sem saída, com crises de
ansiedade e outros sintomas; o que favorece a piora das condições de saúde
mental. Conforme a Organização Mundial de Saúde[2]:
A pandemia está causando um aumento na demanda por serviços de saúde mental. Luto, isolamento, perda de renda e medo estão criando ou agravando transtornos de saúde mental. Muitas pessoas aumentaram o uso de álcool ou drogas e sofrem de problemas crescentes de insônia e ansiedade. Por outro lado, o mesmo COVID 19 pode trazer complicações neurológicas e mentais, como delírios, agitação ou derrames. Pessoas com transtornos mentais, neurológicos ou de uso de drogas também são mais vulneráveis à infecção por SARS-CoV-2 e podem ter maior risco de doenças graves e até de morte.
E, nesse
momento, no qual há urgência em ampliar o cuidado em saúde mental de portas
abertas, o governo federal reduz verbas para a necessária Rede de Atenção
Psicossocial, que conta com profissionais especializados, enquanto aumenta
verbas para Comunidades Terapêuticas de cunho religioso; além de revelar a
intenção de revogar a reforma psiquiátrica e restaurar atendimentos
manicomiais.
Por outro lado, o governo estadual de São Paulo, propõe fechar a enfermaria psiquiátrica do Hospital Geral de Diadema, que é referência nacional de bons cuidados em psiquiatria e em desintoxicação para álcool e [outras] drogas e cumpre com qualidade seu papel na legislação vigente!
Tudo isso contribui para o agravamento da demanda em saúde mental. Nos momentos disruptivos é fundamental evitar que novas rupturas ocorram, para que seja possível as pessoas recuperarem o equilíbrio emocional e psicossocial.
A telemedicina,
os atendimentos psicoterápicos e de outras áreas de cuidado revelaram-se forte
ponto de apoio e contribuíram para evitar complicações de saúde em geral. Assim
como, a comunicação online possibilitou a diminuição da saudade de familiares e
de amigos em isolamento social e foi um recurso para a realização de aulas, de
grande parte de atividades profissionais e do resgate da arte. Embora insuficiente
para atender as demandas da população de baixa renda e que necessite de
ampliação, a tecnologia nos ancorou.
Precisamos
resistir, elaborar esse processo traumático e sonhar para que possamos resgatar
nossa integridade. O futuro depende também dos fragmentos da ruptura; o mundo
não é o mesmo, a vida mudou, mas continua!
[1] Psicóloga, psicanalista, mestre em
Psicologia Clínica/PUC-SP. Conselheira da REDUC - Rede Brasileira de Redução de
Danos e DH. Consultora Comissão de DH e Drogas da OAB-SP, membro ABRAMD/
RENFA/Rede Proteção contra o Genocídio e do Coletivo Intercambiantes BR / SP.
[1] DELAMEAU, J. A História do medo no
Ocidente. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras,
1989, p.125.