quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Mas eu sou a força maior do pensamento...


Nós do Blog Intercambiantes SP prestamos nossa homenagem ao prof. Carlini trazendo a vocês a fala do amigo, professor e sempre mestre – “um pra trás sempre a frente”.

Saudade professor!

 

 Prof. E. A. Carlini

Discurso da Cerimônia de entrega

do título de Professor Emérito, UNIFESP

Obrigado. Quebrando a etiqueta e protocolos, por saudar à Soraya, reitora da UNIFESP. Cara Soraya, com quem trabalhei como companheiros de diretoria da nossa ADUNIFESP, “batalha” em prol de tempos de dignidade e liberdade, entendendo ser da EPM o papel de lutar contra a ditadura.

 E você, diretor da Escola Paulista de Medicina, Antonio Carlos Lopes. Uma pessoa que ama essa nossa Escola como poucas vezes vi na minha vida. E dele me lembro inclusive que uma vez se referiu como “nossa escolinha”, o termo mais gentil, mais amado, que usamos para nossa EPM, por amor. Inclusive até para responder aos comentários que recebíamos no passado de outra Faculdade de Medicina, mais importante, e que nós respondíamos, como “escolinha” de medicina, para a “divina USP”: “somos humanos e queremos fazer com que nossa EPM cada vez caminhe mais e mais para o alto”.

E à Congregação, através da Prof.ª Ligia, também quero me dirigir. Eu sentei nessa Congregação, nesse mesmo anfiteatro, talvez por vinte ou mais anos, e acompanhei debates incríveis a respeito da importância da vida, da aceitação da morte, da importância do país ser livre, debates memoráveis a respeito de “queremos de volta a eleição”.

Entre esses muitos colegas que por aqui passaram, quero lembrar dois pelo dinamismo com que sempre defenderam os interesses da nossa Escola, da nossa Universidade. Eu quero me referir ao José Ribeiro do Valle e ao Rubens Belfort Junior. Esses dois, meus amigos, como todos os demais muito lutaram e não estão presentes por estar um para sempre fora de nosso alcance e outro em viagem para o interior.

Mas eu gostaria de dizer um ditado muito típico do Brasil: “santo de casa não faz milagre”. Eu me considero na realidade uma pessoa que é fruto desta casa  e não por mérito próprio apenas. Mas na realidade, eu trabalhei durante muito tempo no departamento que eu fundei, passei para outro departamento que em três anos aprovou que eu fosse um candidato a Professor Emérito. Mas o título que agora recebo não é apenas meu. Eu queria deixar claro que considero isso em memória de muitos que já se foram e colegas/alunos que muito me entusiasmaram. Os alunos frequentemente pediam minha opinião, pediam aula que eu pudesse dar à noite, etc. Então o mérito não é pessoal, é um mérito coletivo e que agradeço a todos por este aspecto.

Eu queria lembrar rapidamente também a respeito daqueles que marcaram minha existência durante esse tempo todo, estou com 85 para 86 anos de vida. Começo por José Ribeiro do Valle, meu professor de farmacologia e quem me incentivou, quem me encaminhou para a carreira científica. Com a sua “mineirice” e sua imensa sabedoria, eu fui educado com frases de grande teor filosófico, mas também de grande teor nacional, sabedoria interiorana: “Carlini, bezerro manso, mama em qualquer vaca”. Ele me aconselhava que eu nunca deveria partir para a ignorância, partir para argumentação, que eu deveria simplesmente dialogar. Outra frase que sempre fez questão de me dizer, e que pra nós é fundamental: “confie apenas na forte força do seu fraco braço”. Ele dizia isso com muita sabedoria porque sabia que os recursos que nós dispomos e a força que tem a ciência no Brasil são muito pequenos, pra não dizer são praticamente inexistentes; e se nós não confiarmos em nós mesmos, se nosso país não confiar em si próprio, nós nunca sairíamos de um país em desenvolvimento, pois ainda somos país subdesenvolvido mesmo, mudamos apenas o nome, mas continuamos a mesma coisa.

Solange Nappo, há trinta anos que me atura, colega, professora adjunta aqui, esposa com quem passei a discutir de uma maneira muito profunda, não mais só aqui, agora os embates em casa também sobre a problemática do uso de drogas no país, a ela muito eu devo também.

E gostaria de dedicar algumas palavras ao João Pequeno.

João Pequeno foi um aluno meu no curso de alfabetização noturna, que dei na Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, aqui em Campo Belo, para operários da construção civil e empregadas domésticas, analfabetos na fase adulta da vida. Foi talvez a mais importante experiência que eu tive sobre sociologia, sobre sociedade, sobretudo a necessidade de estarmos abertos à mais da metade da população brasileira.

João Pequeno era preto, pequeno, como o próprio nome indica, o maior acanhamento que já vi na minha vida; não falava, não levantava a voz e não conseguia aprender coisa nenhuma. Eu cheguei a ir conversar com o padre da igreja: “padre, acho que é uma desistência que eu faço, eu não gostaria”. Ele disse: “tente um pouco mais, Carlini”. O ensino que nós fazíamos era pelo método Paulo Freire, e a palavra-chave para que todos aprendessem português era a palavra panela, escolhida pelas próprias empregadas domésticas que vinham à noite estudar conosco. Então a palavra panela foi divida em “pa” e nós procurávamos que eles escolhessem, os alunos todos, outras palavras que iniciassem com “pa”. O João Pequeno não passou nessa fase.

Aí nós passamos para a segunda: “pe”. Também foi uma dificuldade, ele suava e todos nós ficamos muito emocionados porque ele não aprendia. Até que um dia ele fez um esforço supremo e saiu “Pelé”. Foi a primeira palavra que ele falou e foi primeira vez que vi um ser humano chorar assim, como eu chorei e todos nós choramos. E a partir deste momento, se alguma vez eu presenciei um milagre na minha vida, esse milagre foi a mudança que João Pequeno passou a ter. Ele passa a partir daí a ser um aluno normal, acompanha a palavra dos outros, tem sua própria palavra, tem seu próprio avanço também. Foi quando eu aprendi então a grande lição: metade da nossa população é constituída em graus menores de Joãos Pequenos, que não são capazes de imaginar a própria potência e força que tem, porque foram induzidos a acreditar que são arraia menor. A começar pelo padre João Antonio Vieira, famoso pregador do passado que ensinava que o negro ou escravo tinha que ser mesmo sofredor porque deles seria o reino dos céus no futuro. Então na realidade, eu achei muito importante a missão que tive e que procuro transmitir atualmente a meus alunos, meus colegas e aos meus seis filhos, cinco filhas e um filho: somos muito da classe social dominante e gostaria que nós entendêssemos que a classe social nossa deveria ser diferente.

Finalmente, para terminar, eu considero que Professor Emérito não é um título de aposentadoria, não. A aposentadoria eu já consegui antes, continuo e quero continuar a trabalhar. E nesse sentido, minhas palavras finais vão pra isto. Eu considero que a exemplo do João Pequeno e outros exemplos, a nossa missão, a minha missão não está ainda terminada. Eu tenho que continuar a dar meus esforços para a coletividade. E nesse sentido, eu quero chamar então a atenção com uma frase popular também. Foi de uma senhora analfabeta até os 50-60 anos, prostituta no nordeste, e que quando perde a sua beleza, ela se alfabetiza e escreve uma poesia chamada “Eu Sou”. Começa com esta frase: “Sou um pra trás que não tem frente. E sou o veloz da carreira que não houve”. Eu achei estas duas frases absolutas do idioma português. Descreve toda uma vida de progresso que ela poderia ter e que não foi. E eu queria dizer então o seguinte: eu me considero um pra trás, com 86 anos, mas que ainda quero ter um pra frente e o terei.

E termino com a frase final desta poesia, desta Francisquinha, que era o nome dela: “mas eu sou a força maior do pensamento”. É o que todos nós somos, força maior do pensamento que evidentemente haverá de continuar, por quanto tempo eu não sei, mas que haverá de ser o bastante para mim.

Muito obrigado.

 

 

14 de Abril de 2015

 

E. A. Carlini

 


sábado, 5 de setembro de 2020

A Redução de Danos como experiência de vida e de trabalho




Maria Angélica Comis[1]

 

Durante a minha adolescência, convivi com muitos amigos e amigas que também estavam em seus períodos de experimentações. No entanto, eu sou a caçula de uma família com idade avançada e bastante conservadora, portanto, tive uma educação baseada em estigmas e medo. Nesse contexto percebi que, mesmo no período de experimentações de substâncias, momento de muitos excessos para alguns adolescentes, eu me mantinha um pouco mais cuidadosa quando fazia uso de algumas substâncias psicoativas, ou seja, já reduzia os danos de saúde e sociais sem ter ideia de que já estava me iniciando no mundo da redução de riscos e danos.

Com o passar dos anos, passei a estudar a temática de álcool e outras drogas na graduação de psicologia por conta própria, pois, no início dos anos 2000, não era tão comum falar de substâncias psicoativas e redução de danos no curso de psicologia.

Após minha graduação, tive a oportunidade de trabalhar em um programa municipal de assistência social a famílias (PROASF) em algumas comunidades da zona sul da cidade de São Paulo; essa atuação me aproximou fortemente da discussão sobre vulnerabilidade e desigualdade social, gênero e racismo.

Em seguida, a minha experiência foi com crianças e adolescentes em contexto de abrigamento fazendo parte da equipe de reestruturação de uma instituição sob intervenção judicial que abrigava 250 crianças e adolescentes no município de Carapicuíba. Foi surpreendente para uma jovem psicóloga que tinha como objetivo mudar o mundo! Nesse sentido, a vivência constante em um contexto em que as violações dos direitos humanos eram sistemáticas foi possível tentar minimizar os danos em relação às crianças, adolescentes e suas famílias atendidas por aquele serviço.

Além disso, o estigma imputado pelos conselheiros tutelares e pelo poder judiciário às famílias em alta vulnerabilidade social, com sofrimento psíquico e muitas vezes usuárias de substâncias estavam completamente relacionados aos abrigamentos, inclusive de crianças abrigadas há 10 anos. Todas estas entidades são representantes do Estado e este modo de funcionamento é violadora dos direitos à convivência daquelas famílias.

Esse capítulo da minha trajetória profissional foi fundamental para a minha entrada no campo das políticas sobre álcool e outras drogas. Passei a me aprofundar na área de pesquisa qualitativa e substâncias psicoativas e o primeiro estudo realizado foi sobre a opção de não uso de Ecstasy (MDMA-metilenodioxidometanfetamina). Esse estudo foi realizado a partir de observação participante em contextos de festas e festivais, principalmente de música eletrônica entre os anos de 2008 e 2011. Nesse período tive um belo encontro com o Centro de Convivência É de Lei propiciado pela grande Tharcila Chaves – amiga que estudava estratégias de redução de danos entre pessoas que usavam crack – o É de Lei havia acabado de ser contemplado em um edital da UNODC e Ministério da Saúde para desenvolver um projeto de prevenção às IST’s (infecções sexualmente transmissíveis) em contextos de festas. No ano de 2011, eu finalmente havia encontrado uma organização que trabalhava com as temáticas que tanto me faziam sentido.

Passei a trabalhar no Centro de Convivência É de Lei para coordenar um projeto que se tornou, após os Coletivos Balance e Balanceará, o Projeto ResPire, uma grande referência em contextos de festas construída ao longo dos anos.

O Centro de Convivência É de Lei é uma organização da sociedade civil que atua com redução de danos desde 1998. Acompanhou pessoas que usavam cocaína injetável e sua mudança da forma de administração injetada para a forma fumada; a equipe fez troca de seringas, atuou com as profissionais do sexo, com pessoas em situação de rua, usuárias de substâncias psicoativas, além de fazer a prevenção das IST’s usando sempre o vínculo e a convivência como as melhores estratégias de atuação. O prazer de fazer parte do primeiro centro de convivência do Brasil para pessoas que usam drogas é indescritível, pois a complexidade é enorme, mas a possibilidade de construir coletivamente o cotidiano destas pessoas é maravilhoso.

Durante os anos de 2011 a 2014 pude participar de projetos de pesquisa interessantes relacionados ao uso de substâncias, como por exemplo, a administração de ayahuasca em um contexto laboratorial, realizando entrevistas semiestruturadas das pessoas voluntárias do estudo e uma grande imersão no mundo da ibogaína, sendo esta utilizada no tratamento de pessoas com problemas decorrentes do abuso de substâncias. Entrevistei cerca de vinte e duas pessoas que estavam abstinentes após se tratarem com a ibogaína. Essas experiências foram importantes e contribuíram para identificar os potenciais terapêuticos dessas substâncias e me manter próxima da área acadêmica.

Após aproximadamente três anos longe do É de Lei (2014-2017), período em que pude experienciar trabalhar como Assessora de Políticas Públicas sobre álcool e outras drogas no poder público, coordenando projetos de direitos humanos para as pessoas que vivem em situação de rua e usuárias de substâncias psicoativas, além de fazer parte da coordenação colegiada intersetorial do Programa De Braços Abertos,  projeto de garantia de direitos humanos pautado na redução de danos. Senti que podia voltar para o É de Lei com uma bagagem ainda maior e poder contribuir para que pudéssemos ampliar nossas ações, incidir ainda mais nas políticas públicas, garantir a defesa dos direitos das pessoas que usam drogas e, principalmente, favorecer que as pessoas mais afetadas pela nefasta guerra às drogas ocupem lugares e possam exercer o direito da participação social.

Com esse pequeno relato, eu tentei expressar a respeito da relação entre a redução de danos em minha vida pessoal e profissional, sempre lembrando que a partir da RD (redução de danos) podemos lutar por mudanças estruturais que combatam o estigma, a desigualdade social, o racismo, o machismo e qualquer forma de discriminação de pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas.



[1] Maria Angélica Comis – psicóloga clínica, redutora de danos, mestre em Psicobiologia, especialista em Medicina Comportamental e Terapia Cognitiva Comportamental, foi Assessora de Políticas Públicas sobre álcool e outras drogas da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, professora universitária, coordenou o Projeto ResPire e atualmente é coordenadora de Advocacy e Comunicação do Centro de Convivência É de Lei. 


Programa Atitude: uma outra possibilidade de cuidado

                                                                                                                            Malu Freire [1] ...