quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

O caráter traumático da pandemia pela Covid 19

 

Arte: Pintura de Rosana Della Coletta

Celi Cavallari[1]

 

Na passagem para a terceira década do século XXI fomos surpreendidos pela pandemia do coronavírus, acontecimento que atravessa a história da humanidade e muda a rotina do viver humano no planeta. Em plena revolução tecnológica, a maioria não esperava agora ter o desafio de uma nova epidemia, sem respostas imediatas.

 Iniciamos 2021 com quase 200.000 mortos pela COVID 19 no Brasil, segundo os dados oficiais; e, passado o impacto inicial, estamos entrando em uma nova onda de crescimento do número de pessoas infectadas. As respostas do poder público foram insuficientes e, por vezes, contraproducentes para que fossem tomadas medidas preventivas adequadas; e é alto o grau de sofrimento da população.

Delumeau no livro A História do medo no Ocidente,[1] observa que a peste impõe

a “interrupção das atividades familiares, silêncio da cidade, solidão na doença, anonimato na morte, abolição dos ritos coletivos de alegria e de tristeza: todas essas rupturas brutais com os usos cotidianos eram acompanhadas da impossibilidade radical de conceber projetos de futuro, pertencendo a “iniciativa”, doravante, inteiramente à peste. Ora, em período normal, mesmo os velhos agem em função do futuro, tal como aquele de La Fontaine que não só constrói, mas planta. Viver sem projeto não é humano. No entanto, a epidemia obrigava a considerar cada minuto como um sursis e a não ter outro horizonte diante de si que não o de uma morte próxima.”

A falta de perspectiva, a ameaça à vida, a impossibilidade de saber quanto tempo vai durar, o isolamento social, o descuidado social e a instabilidade nos colocam em um patamar muito semelhante ao referido por Delumeau.

Para Freud, quando a adversidade do destino nos atinge, nos deparamos com sentimentos como angústia, desamparo e culpa, provocados tanto pelo perigo apresentado na realidade, quanto pela ameaça à nossa identidade.

A proporção de riscos, de medo, de luto e de dor associada à pandemia pode alcançar forte intensidade para o psiquismo e ser vivenciada como experiência traumática, exigindo grandes esforços para garantir o equilíbrio psíquico que é diferente para cada pessoa e para cada território.

A pandemia desencadeou rupturas e fomos jogados para uma condição mais regredida. De repente, ninguém pode sair de casa, houve diminuição de renda, situações de emergência, de risco e perdemos parte de nossa autonomia. Para as pessoas mais vulneráveis sem moradia, saneamento, ou que moram em situação de risco, a impossibilidade de cumprir as consignas preconizadas se traduziu no aumento do sentimento de desamparo e a diminuição de renda aumentou o risco à vida.

Negar também não é solução. Os países que fizeram isolamento social rigoroso e priorizaram ações de cuidado conseguiram resultados melhores em menor tempo, enquanto aqueles que não fizeram, apresentam maior número de infectados e de mortes, como é o caso do Brasil.

Quando a prioridade é da ordem da Saúde, seria importante que as forças políticas colaborassem e causassem menos stress. Em nosso país, tem ocorrido o oposto, diariamente recebemos notícias sobre disparidades políticas ou das forças de segurança que entram em choque com as ações de cuidado.

O adoecimento e morte continuam crescendo e os protocolos de tratamento e procedimentos médicos, por vezes, são tratados como se fossem apenas questão política e não dependessem do conhecimento científico. Parte do mundo iniciou a vacinação, enquanto no país as providências são lentas e quando governadores, como no caso de São Paulo, tomam medidas para proteger a região mais populosa do país, há interferência política federal e a esperança fica cada vez mais adiada.

Esses embates são mortíferos, as vivências relatadas por pacientes são semelhantes às situações de guerra, nas quais as pessoas se sentem sem saída, com crises de ansiedade e outros sintomas; o que favorece a piora das condições de saúde mental. Conforme a Organização Mundial de Saúde[2]:

 A pandemia está causando um aumento na demanda por serviços de saúde mental. Luto, isolamento, perda de renda e medo estão criando ou agravando transtornos de saúde mental. Muitas pessoas aumentaram o uso de álcool ou drogas e sofrem de problemas crescentes de insônia e ansiedade. Por outro lado, o mesmo COVID 19 pode trazer complicações neurológicas e mentais, como delírios, agitação ou derrames. Pessoas com transtornos mentais, neurológicos ou de uso de drogas também são mais vulneráveis ​​à infecção por SARS-CoV-2 e podem ter maior risco de doenças graves e até de morte. 

E, nesse momento, no qual há urgência em ampliar o cuidado em saúde mental de portas abertas, o governo federal reduz verbas para a necessária Rede de Atenção Psicossocial, que conta com profissionais especializados, enquanto aumenta verbas para Comunidades Terapêuticas de cunho religioso; além de revelar a intenção de revogar a reforma psiquiátrica e restaurar atendimentos manicomiais.

  Por outro lado, o governo estadual de São Paulo, propõe fechar a enfermaria psiquiátrica do Hospital Geral de Diadema, que é referência nacional de bons cuidados em psiquiatria e em desintoxicação para álcool e [outras] drogas e cumpre com qualidade seu papel na legislação vigente!

 Tudo isso contribui para o agravamento da demanda em saúde mental. Nos momentos disruptivos é fundamental evitar que novas rupturas ocorram, para que seja possível as pessoas recuperarem o equilíbrio emocional e psicossocial.

 

A telemedicina, os atendimentos psicoterápicos e de outras áreas de cuidado revelaram-se forte ponto de apoio e contribuíram para evitar complicações de saúde em geral. Assim como, a comunicação online possibilitou a diminuição da saudade de familiares e de amigos em isolamento social e foi um recurso para a realização de aulas, de grande parte de atividades profissionais e do resgate da arte. Embora insuficiente para atender as demandas da população de baixa renda e que necessite de ampliação, a tecnologia nos ancorou.

Precisamos resistir, elaborar esse processo traumático e sonhar para que possamos resgatar nossa integridade. O futuro depende também dos fragmentos da ruptura; o mundo não é o mesmo, a vida mudou, mas continua!

 

 


[1] Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica/PUC-SP. Conselheira da REDUC - Rede Brasileira de Redução de Danos e DH. Consultora Comissão de DH e Drogas da OAB-SP, membro ABRAMD/ RENFA/Rede Proteção contra o Genocídio e do Coletivo Intercambiantes BR / SP. 

 



[1] DELAMEAU, J. A História do medo no Ocidente. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.125.

 

Programa Atitude: uma outra possibilidade de cuidado

                                                                                                                            Malu Freire [1] ...