segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A “nova” Lei de Drogas – A era do Grotesco!

 

Geliy Mikhailovich Korzhev-Chuvelev – fonte da imagem: https://www.megacurioso.com.br/artes/102068-este-mundo-grotesco-foi-imaginado-por-um-sovietico-contrario-ao-capitalismo.htm?img-11=


 

Rubens Espejo da Silva[1]

No dia 11 de abril de 2019 por meio do Decreto N° 9.761, O Presidente da República, Jair Bolsonaro, aprovou a “nova” Política Nacional sobre Drogas, substituindo a estratégia de Redução de Danos pelo Paradigma da Abstinência. O foco da nova política se dá na PROMOÇÃO e na MANUTENÇÃO da ABSTINÊNCIA (A palavra abstinência aparece 7 vezes). O Governo Federal, ao produzir este Decreto trouxe o que há de mais moderno em termos de atraso, a saber: o fortalecimento dos atributos de guerra às drogas em detrimento à descriminalização e legalização. Busca-se nas internações involuntárias em Comunidades Terapêuticas [2]a cura para os “drogados”; no endurecimento ao combate ao tráfico, a solução para os “bandidos”, e assim foi sancionada a PLC N° 37/2013, transformada na “nova” Lei sobre Drogas – Lei 13.840 de 05 de junho de 2019. Este tipo de Política Pública é muito mais do que um “simples” retrocesso, ela é a exclusão da diversidade no cuidado às pessoas que optaram por usar drogas. Ela é o que poderíamos chamar de produção do GROTESCO.  Gosto da definição do Grotesco feita por Michel Foucault em “Os Anormais”:

Chamarei de “grotesco” o fato, para um discurso ou para um indivíduo, de deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los. O grotesco ou, se quiserem o “ubuesco”[3] não é simplesmente uma categoria de injúrias, não é um epíteto injurioso, e eu não queria empregá-lo neste sentido. Creio que existe uma categoria precisa; em todo caso, dever-se-ia definir uma categoria precisa da análise histórico-política, que seria a categoria do grotesco ou do ubuesco. O terror ubuesco, a soberania grotesca ou, em termos mais austeros, a maximização dos efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz: isso, creio eu, não é um acidente da história do poder, não é uma falha mecânica. Parece-me que é uma das engrenagens que são parte inerente dos mecanismos de poder (Foucault, 2018, p.11).

            A produção do Grotesco é feita pelo Presidente Ubuesco, ao qual, por meio do seu poder, impõe não propõe, pune não acolhe, escolhe quem merece viver e quem morrer, - MAS E DÁI? - . Enfim, querem privar as pessoas ao direito de uso, bem como a qual estratégia de cuidado aderir, afinal para o Ubu e seus asseclas só existe o paradigma da Abstinência.

Penso sempre no exercício ético no cuidado às pessoas que fazem uso de drogas, até porque sou uma delas - revolto-me com a imposição da abstinência como Política Pública para todos -. Revolto-me com a própria abstinência, nas palavras do historiador Henrique Carneiro (2019):

É preciso lembrar sempre que a abstinência não é uma moderação, mas um excesso. É preciso moderar ambos, tanto o excesso como a própria moderação. Um excesso moderado, de qualquer forma, parece sempre melhor do que a moderação excessiva. É preciso temperar a temperança e moderar a moderação, para não cometer um paradoxo (p. 64).

A abstinência é o excesso do não! Entendo a Redução de Danos não como substitutiva das práticas tradicionais de internamento, mas sim um cuidado complementar, que pode restituir a possibilidade de cuidado de si e de circulação nos territórios. Não creio que devemos buscar a hegemonia de um tipo único de cuidado, mas sim, diversidade, assim como preconizava Antonio Lancetti (2014) – RD como ampliação da vida! - Acreditamos na RD não como uma impossibilidade à abstinência, mas um dos modos de se chegar a ela, caso a pessoa almeje tal triste meta. 

Referências

BRASIL. Lei nº 13.840, de 05 de junho de 2019. Altera as Leis nos 11.343, de 23 de agosto de 2006, 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, 8.981, de 20 de janeiro de 1995, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, 8.069, de 13 de julho de 1990, 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e 9.503, de 23 de setembro de 1997, os Decretos-Lei nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e 5.452, de 1º de maio de 1943, para dispor sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e para tratar do financiamento das políticas sobre drogas DF: Imprensa Nacional, 06 jun. 2019. Seção 1, p. 2. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13840.htm>. Acesso em: 18 jun. 2019.

 

CARNEIRO, Henrique. Drogas: A História do proibicinismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.

 

FOUCAULT, Michel. Os Anormais: Curso dado no Collége de France (1974-1975). 2. ed. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2010

LANCETTI, Antonio. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec, 2014.



[1] Psicólogo clínico,  mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

[2] As comunidades terapêuticas já foram denunciadas por diversas violações de direitos humanos. Ver dossiê produzido pelo CFP - https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf

[3] Segue as notas do livro Os Anormais p. 25 para definição do adjetivo “ubuesco” foi introduzido em 1922, a partir da peça de A. Jarry, Ubu roi, Paris, 1896. Ver Grand Larousse, VII, 1978, p. 6319: “Diz-se do que, por seu carater grotesco, absurdo ou caricato, lembra o personagem Ubu”; Le Grande Robert, IX, 1985, p.573: “Que se assemelha ao personagem Ubu Rei (por um caráter comicamente cruel, cínico e covarde ao extremo).

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

“Reflexões sem dor”, de uma médica de família e comunidade, dolorida.

Lua Sá Dultra [1]


De dentro da sala, escuto as vozes das pessoas já conhecidas que chegam: 

-“Ô, Maria Bonita! Ô, Lampeona! Cheguei!”. Pela entonação e volume, enquanto escuto a pessoa que tá cá dentro, penso na ordem de chamada, e vamos nessa de tentar estratificar vulnerabilidades… Às vezes dá certo, muitas dá errado. Coisa boa foi realizar que ninguém educa ninguém e nem está ali pra isso. 

Entre uma pessoa e outra, a gente tenta agilizar aquelas coisas mais simples: adianta a coleta do escarro de um, corrige uma receita, entrega os medicamentos de outra, dá tchau pra um bebê que nasceu e você só conhecia de dentro da barriga. Volta o cara do escarro com xixi no potinho, pega novo coletor, explico: “não é xixi, é escarro”. Falhamos na comunicação. 

O corredor é o ponto alto. Nunca me furtei de ir ao corredor, gosto de ver o que está acontecendo: casais apaixonados que querem engravidar, casais brigando e gritando, um já almoçando porque conseguiu desenrolar a quentinha, uma outra discutindo com o porteiro porque quer entrar com a cachorra, uma ouvindo um radinho nas alturas, ainda outro ajudando o colega a organizar os medicamentos. Há também muita solidariedade e beleza. Quando minha avó morreu, muitas foram na unidade só me dar um abraço. Quando ‘apertam meu juízo’, digo que vou botar todo mundo dentro da sala e eles riem. Outros seguem xingando, e assim vamos. 

É tenso, na maioria das vezes é tenso. E agora, com tira luva, bota luva, passa álcool gel... ai me contaminei, volta tudo, tá mais tenso ainda. 

A realidade das pessoas que vivem nas ruas atesta sua capacidade extraordinária de resistir às situações mais adversas. Resistem às balas da guerra às drogas, resistem aos alagamentos da cidade, a infecções extensas, subagudas, à fome, à tristeza, às dores múltiplas do racismo. O que é um vírus diante disso tudo? “Eu sou micóbrio!”, assim me dizem. 

Morro um pouco e nasço um pouco, a cada dia, sendo médica de família e comunidade em uma equipe de Consultório na Rua. Que eu siga aberta a ouvir com o mesmo interesse uma história clínica difícil e um senhor cordelista que, no olho do furacão, entra na sala e diz que foi apenas me recitar um cordel. Afinal, “quem faz um poema salva um afogado”1, e assim a gente vai se salvando. 

Parabéns pra nós, neste 19 de maio de 2020, Dia Mundial da Médica e do Médico de Família e Comunidade. 


Referências Bibliográficas: 1 – Quintana, Mário. “Emergência”. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 

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[1] Lua Sá Dultra é médica da familia e comunidade em Salvador - BA

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Do incômodo ao encontro: a experiência de Redução de Danos na Feira Noturna.

 


Ana Paula Briguet [1]

Caty C. Fernandes Teodoro[2]

 

A Feira livre noturna acontece no Centro da cidade de Barueri- SP, semanalmente às terças-feiras. É um espaço de alimentação, cheio de som, movimentado e colorido. Estende-se ao evento, os arredores que incluem a praça dos estudantes e o estacionamento do ginásio municipal.  Nessas áreas acontecem atividades de cultura e esporte tais como: a realização da Batalha de Rima da Aldeia, o basquete de três, skate e manobras com bicicletas.

Em maio de 2017 o Ministério Público do Estado de São Paulo através do Promotor de Justiça da Vara da Infância e Juventude, convoca uma reunião ampliada integrantes da Rede intersetorial para discussão da utilização desse espaço público pelos jovens e da preocupação como as cenas de uso de álcool e outras drogas.

Assim, iniciamos com essa demanda que a princípio não nos soou como de cuidado, mas de “resolução” do incômodo causado pelo encontro e convivência de jovens na Batalha de Rima e o uso de drogas. Mas, afinal, não temos que nos incomodar?

A contextualização da feira noturna fará todo sentido para entendermos como nós, trabalhadores da saúde, junto com os jovens, frequentadores e trabalhadores da feira, fomos constituindo ações de Redução de Danos que tinham como objetivo a promoção do autocuidado e compartilhar o máximo de informações possíveis sobre o uso de drogas.

 Assim, criamos um grupo de trabalho, representado pelas equipes do CAPS III Álcool e outras Drogas, CAPS II Infanto Juvenil, Consultório na Rua e profissionais da Unidade Básica referência daquele território e iniciamos com articulação da rede intersetorial, mapeamento e territorialização do espaço da feira.

Encararmos a feira não apenas como um espaço físico, mas como um território, singularizado, produto e produtor de singularidades, isto é onde a subjetivação acontece.

Para realização do mapeamento estiveram presentes os profissionais da equipe do Consultório na Rua, do Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas (CAPS-ad/CRAD) e o Centro de Atenção Psicossocial Infantil Infanto Juvenil (CAPSij). Foram realizadas visitas à Feira Noturna e seu entorno durante as três primeiras semanas do mês de julho/2017, no período das 17h00 às 21h00 e após 01 ano realizamos novo mapeamento em julho de 2018.

 O objetivo das ações in loco era a observação do espaço, das pessoas que a frequentam incluindo os jovens e trabalhadores da feira, bem como o percurso por elas realizado, utilizamos como metodologia a observação direta e um roteiro norteador semi-estruturado para melhor compreensão e análise dos dados obtidos. Para composição deste mapeamento, também foram realizadas reuniões semanais do Grupo de Trabalho para discussão das observações, percepções e elaboração de estratégias. Com os dados obtidos, fora composto um diagnóstico situacional e, posteriormente, a construção de ações a fim de realizarmos o cuidado de Promoção e Prevenção à saúde dos adolescentes e jovens.

Sobre o olhar da equipe

A Feira Noturna é um espaço de suma importância para população, valorizada por todas as faixas etárias. Pareceu se configurar para além de um local de aquisição de produtos, mas também como espaço de encontro e socialização e que se tornou um ponto de referência para as pessoas em Barueri e região. Especialmente sobre os adolescentes, notamos que eles se utilizam da feira para se alimentar e depois se dirigem para a Praça dos Estudantes ou local onde ocorre a Batalha de Rima- Batalha da Aldeia.

Os grupos se encontram a partir das 20h00 e notamos o uso de bebida alcoólica, narguile e, em menor quantidade, maconha. Os jovens se organizam em casais, pequenos grupos (de três a cinco pessoas) e pouquíssimos grupos maiores (com mais de cinco pessoas). Há a presença de ciclistas e skatistas percorrendo o espaço da praça, nas ruas e fazendo manobras. Também entramos em contato com o Pronto Socorro Central para identificarmos se havia diferença quanto a população que era atendida na terça-feira, bem como as queixas iniciais. A equipe não identificou diferença no fluxo de atendimento dos munícipes neste dia, tão pouco o aumento do número de jovens para uso das dependências do Pronto Socorro.

Nesse sentido, curiosamente o uso de drogas não apareceu como incômodo para os feirantes, nem para as pessoas que circulavam na feira e tão pouco pela Guarda Municipal. Em nossas “abordagens” ficava evidente o interesse das pessoas pelo local como espaço de múltiplos encontros e lazer no período noturno.

As abordagens citadas em aspas representam a nossa desconstrução nos encontros com os jovens, que associavam a abordagem ao campo repressor e policialesco e não ao encontro e ao cuidado que propomos.  

Decidimos então, que adotaríamos uma estratégia ética de nos aproximar dos jovens e não mais abordá-los.  Em duplas ou em trios, os profissionais foram se aproximando e propondo conversas a respeito da vida, afetos, angústias e autocuidado, relações familiares e sobre o uso de drogas na perspectiva da redução de riscos e danos. Os encontros eram finalizados com o desejo de nos encontrarmos novamente deixando uma porta aberta nos serviços CAPS, UBS ou na própria feira. 

Desconstruímos e construímos muitas ações. Experimentamos oficinas culturais e temáticas, constituição de equipes ampliadas intersetoriais, parcerias com Serviço de Atenção Especializado- SAE nas campanhas de teste rápido, Setembro Amarelo e ações comunitárias com os organizadores Batalha de Rima.

Nesse processo passamos a identificar a necessidade de garantia de uma permanência e o reconhecimento por parte dos frequentadores da nossa presença e do nosso vínculo com o território. Adotamos uma nova estratégia, um espaço físico fixo, uma tenda. Um lugar onde teríamos um espaço acolhedor para quem quisesse estar e nos encontrar ou para quem tivesse interesse em conhecer a nossa equipe e o nosso trabalho. Espalhamos cadeiras de praia e almofadas no chão, mesinha com água, chocolate, balas de hortelã, preservativos, insumos, folders dos serviços e cartazes nas laterais e na frente da tenda com frases que pudessem despertar olhares e aproximações. Além disso, ampliamos os encontros que passaram de mensais para quinzenais.

  Esse é um projeto que nos traz muitas inquietações e desafios, nos questionamos muitas vezes a respeito de nossa atuação na cena de uso dos jovens em espaço aberto de lazer. Não ocupamos o lugar de resolução do incômodo, mas sim, de respeito a cultura do jovem, trazendo, nos diferentes tipos de aproximação, a vida, a garantia dos direitos dos jovens de pertencer, de ter acesso aos serviços de saúde e a ampliação do repertório de atividades de cultura, lazer e arte.

Que possamos estar sempre abertos aos encontros como nos diz Blanchot (2001, p. 63) que encontrar é: “[...] tornear, dar a volta, rodear. Encontrar um canto é tornear o movimento melódico, fazê-lo girar. ” É poder aproximar de suas inúmeras formas de combinações, girar em torno de seus múltiplos movimentos e circular por suas variações e arranjos.



[1] Terapeuta Ocupacional, trabalhadora nos dispositivos: CAPS II, CAPS III, NASF e na Gestão de serviços de Saúde Mental. Membro intercambiante SP. Mestrado em Psicologia Clínica pela PUC/SP(2008), especialista em Saúde Mental pela UNIFESP(2008), especialista em Saúde da Família pela UNIFESP( 2016), especialista em gestão do SUS FIOCRUZ ( 2013).

[2] Caty Cilene Fernandes Teodoro, terapeuta Ocupacional, trabalhadora do SUS desde 2007, atualmente atua na equipe do Consultório na Rua de Barueri. Especialista em
Saúde Mental pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo- USP
Paulo- UNIFESP (2016),especialista em Micropolítica da Gestão (2011), especialista em Saúde da Família pela Universidade Federal de Sãoe Trabalho em Saúde (2018) pela Universidade Federal Fluminense.

Referências

BLANCHOT, maurice. A conversa infinita: A palavra plural.trad.Aurelio Guerra Neto. São Paulo: Escuta 2001.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Mas eu sou a força maior do pensamento...


Nós do Blog Intercambiantes SP prestamos nossa homenagem ao prof. Carlini trazendo a vocês a fala do amigo, professor e sempre mestre – “um pra trás sempre a frente”.

Saudade professor!

 

 Prof. E. A. Carlini

Discurso da Cerimônia de entrega

do título de Professor Emérito, UNIFESP

Obrigado. Quebrando a etiqueta e protocolos, por saudar à Soraya, reitora da UNIFESP. Cara Soraya, com quem trabalhei como companheiros de diretoria da nossa ADUNIFESP, “batalha” em prol de tempos de dignidade e liberdade, entendendo ser da EPM o papel de lutar contra a ditadura.

 E você, diretor da Escola Paulista de Medicina, Antonio Carlos Lopes. Uma pessoa que ama essa nossa Escola como poucas vezes vi na minha vida. E dele me lembro inclusive que uma vez se referiu como “nossa escolinha”, o termo mais gentil, mais amado, que usamos para nossa EPM, por amor. Inclusive até para responder aos comentários que recebíamos no passado de outra Faculdade de Medicina, mais importante, e que nós respondíamos, como “escolinha” de medicina, para a “divina USP”: “somos humanos e queremos fazer com que nossa EPM cada vez caminhe mais e mais para o alto”.

E à Congregação, através da Prof.ª Ligia, também quero me dirigir. Eu sentei nessa Congregação, nesse mesmo anfiteatro, talvez por vinte ou mais anos, e acompanhei debates incríveis a respeito da importância da vida, da aceitação da morte, da importância do país ser livre, debates memoráveis a respeito de “queremos de volta a eleição”.

Entre esses muitos colegas que por aqui passaram, quero lembrar dois pelo dinamismo com que sempre defenderam os interesses da nossa Escola, da nossa Universidade. Eu quero me referir ao José Ribeiro do Valle e ao Rubens Belfort Junior. Esses dois, meus amigos, como todos os demais muito lutaram e não estão presentes por estar um para sempre fora de nosso alcance e outro em viagem para o interior.

Mas eu gostaria de dizer um ditado muito típico do Brasil: “santo de casa não faz milagre”. Eu me considero na realidade uma pessoa que é fruto desta casa  e não por mérito próprio apenas. Mas na realidade, eu trabalhei durante muito tempo no departamento que eu fundei, passei para outro departamento que em três anos aprovou que eu fosse um candidato a Professor Emérito. Mas o título que agora recebo não é apenas meu. Eu queria deixar claro que considero isso em memória de muitos que já se foram e colegas/alunos que muito me entusiasmaram. Os alunos frequentemente pediam minha opinião, pediam aula que eu pudesse dar à noite, etc. Então o mérito não é pessoal, é um mérito coletivo e que agradeço a todos por este aspecto.

Eu queria lembrar rapidamente também a respeito daqueles que marcaram minha existência durante esse tempo todo, estou com 85 para 86 anos de vida. Começo por José Ribeiro do Valle, meu professor de farmacologia e quem me incentivou, quem me encaminhou para a carreira científica. Com a sua “mineirice” e sua imensa sabedoria, eu fui educado com frases de grande teor filosófico, mas também de grande teor nacional, sabedoria interiorana: “Carlini, bezerro manso, mama em qualquer vaca”. Ele me aconselhava que eu nunca deveria partir para a ignorância, partir para argumentação, que eu deveria simplesmente dialogar. Outra frase que sempre fez questão de me dizer, e que pra nós é fundamental: “confie apenas na forte força do seu fraco braço”. Ele dizia isso com muita sabedoria porque sabia que os recursos que nós dispomos e a força que tem a ciência no Brasil são muito pequenos, pra não dizer são praticamente inexistentes; e se nós não confiarmos em nós mesmos, se nosso país não confiar em si próprio, nós nunca sairíamos de um país em desenvolvimento, pois ainda somos país subdesenvolvido mesmo, mudamos apenas o nome, mas continuamos a mesma coisa.

Solange Nappo, há trinta anos que me atura, colega, professora adjunta aqui, esposa com quem passei a discutir de uma maneira muito profunda, não mais só aqui, agora os embates em casa também sobre a problemática do uso de drogas no país, a ela muito eu devo também.

E gostaria de dedicar algumas palavras ao João Pequeno.

João Pequeno foi um aluno meu no curso de alfabetização noturna, que dei na Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, aqui em Campo Belo, para operários da construção civil e empregadas domésticas, analfabetos na fase adulta da vida. Foi talvez a mais importante experiência que eu tive sobre sociologia, sobre sociedade, sobretudo a necessidade de estarmos abertos à mais da metade da população brasileira.

João Pequeno era preto, pequeno, como o próprio nome indica, o maior acanhamento que já vi na minha vida; não falava, não levantava a voz e não conseguia aprender coisa nenhuma. Eu cheguei a ir conversar com o padre da igreja: “padre, acho que é uma desistência que eu faço, eu não gostaria”. Ele disse: “tente um pouco mais, Carlini”. O ensino que nós fazíamos era pelo método Paulo Freire, e a palavra-chave para que todos aprendessem português era a palavra panela, escolhida pelas próprias empregadas domésticas que vinham à noite estudar conosco. Então a palavra panela foi divida em “pa” e nós procurávamos que eles escolhessem, os alunos todos, outras palavras que iniciassem com “pa”. O João Pequeno não passou nessa fase.

Aí nós passamos para a segunda: “pe”. Também foi uma dificuldade, ele suava e todos nós ficamos muito emocionados porque ele não aprendia. Até que um dia ele fez um esforço supremo e saiu “Pelé”. Foi a primeira palavra que ele falou e foi primeira vez que vi um ser humano chorar assim, como eu chorei e todos nós choramos. E a partir deste momento, se alguma vez eu presenciei um milagre na minha vida, esse milagre foi a mudança que João Pequeno passou a ter. Ele passa a partir daí a ser um aluno normal, acompanha a palavra dos outros, tem sua própria palavra, tem seu próprio avanço também. Foi quando eu aprendi então a grande lição: metade da nossa população é constituída em graus menores de Joãos Pequenos, que não são capazes de imaginar a própria potência e força que tem, porque foram induzidos a acreditar que são arraia menor. A começar pelo padre João Antonio Vieira, famoso pregador do passado que ensinava que o negro ou escravo tinha que ser mesmo sofredor porque deles seria o reino dos céus no futuro. Então na realidade, eu achei muito importante a missão que tive e que procuro transmitir atualmente a meus alunos, meus colegas e aos meus seis filhos, cinco filhas e um filho: somos muito da classe social dominante e gostaria que nós entendêssemos que a classe social nossa deveria ser diferente.

Finalmente, para terminar, eu considero que Professor Emérito não é um título de aposentadoria, não. A aposentadoria eu já consegui antes, continuo e quero continuar a trabalhar. E nesse sentido, minhas palavras finais vão pra isto. Eu considero que a exemplo do João Pequeno e outros exemplos, a nossa missão, a minha missão não está ainda terminada. Eu tenho que continuar a dar meus esforços para a coletividade. E nesse sentido, eu quero chamar então a atenção com uma frase popular também. Foi de uma senhora analfabeta até os 50-60 anos, prostituta no nordeste, e que quando perde a sua beleza, ela se alfabetiza e escreve uma poesia chamada “Eu Sou”. Começa com esta frase: “Sou um pra trás que não tem frente. E sou o veloz da carreira que não houve”. Eu achei estas duas frases absolutas do idioma português. Descreve toda uma vida de progresso que ela poderia ter e que não foi. E eu queria dizer então o seguinte: eu me considero um pra trás, com 86 anos, mas que ainda quero ter um pra frente e o terei.

E termino com a frase final desta poesia, desta Francisquinha, que era o nome dela: “mas eu sou a força maior do pensamento”. É o que todos nós somos, força maior do pensamento que evidentemente haverá de continuar, por quanto tempo eu não sei, mas que haverá de ser o bastante para mim.

Muito obrigado.

 

 

14 de Abril de 2015

 

E. A. Carlini

 


sábado, 5 de setembro de 2020

A Redução de Danos como experiência de vida e de trabalho




Maria Angélica Comis[1]

 

Durante a minha adolescência, convivi com muitos amigos e amigas que também estavam em seus períodos de experimentações. No entanto, eu sou a caçula de uma família com idade avançada e bastante conservadora, portanto, tive uma educação baseada em estigmas e medo. Nesse contexto percebi que, mesmo no período de experimentações de substâncias, momento de muitos excessos para alguns adolescentes, eu me mantinha um pouco mais cuidadosa quando fazia uso de algumas substâncias psicoativas, ou seja, já reduzia os danos de saúde e sociais sem ter ideia de que já estava me iniciando no mundo da redução de riscos e danos.

Com o passar dos anos, passei a estudar a temática de álcool e outras drogas na graduação de psicologia por conta própria, pois, no início dos anos 2000, não era tão comum falar de substâncias psicoativas e redução de danos no curso de psicologia.

Após minha graduação, tive a oportunidade de trabalhar em um programa municipal de assistência social a famílias (PROASF) em algumas comunidades da zona sul da cidade de São Paulo; essa atuação me aproximou fortemente da discussão sobre vulnerabilidade e desigualdade social, gênero e racismo.

Em seguida, a minha experiência foi com crianças e adolescentes em contexto de abrigamento fazendo parte da equipe de reestruturação de uma instituição sob intervenção judicial que abrigava 250 crianças e adolescentes no município de Carapicuíba. Foi surpreendente para uma jovem psicóloga que tinha como objetivo mudar o mundo! Nesse sentido, a vivência constante em um contexto em que as violações dos direitos humanos eram sistemáticas foi possível tentar minimizar os danos em relação às crianças, adolescentes e suas famílias atendidas por aquele serviço.

Além disso, o estigma imputado pelos conselheiros tutelares e pelo poder judiciário às famílias em alta vulnerabilidade social, com sofrimento psíquico e muitas vezes usuárias de substâncias estavam completamente relacionados aos abrigamentos, inclusive de crianças abrigadas há 10 anos. Todas estas entidades são representantes do Estado e este modo de funcionamento é violadora dos direitos à convivência daquelas famílias.

Esse capítulo da minha trajetória profissional foi fundamental para a minha entrada no campo das políticas sobre álcool e outras drogas. Passei a me aprofundar na área de pesquisa qualitativa e substâncias psicoativas e o primeiro estudo realizado foi sobre a opção de não uso de Ecstasy (MDMA-metilenodioxidometanfetamina). Esse estudo foi realizado a partir de observação participante em contextos de festas e festivais, principalmente de música eletrônica entre os anos de 2008 e 2011. Nesse período tive um belo encontro com o Centro de Convivência É de Lei propiciado pela grande Tharcila Chaves – amiga que estudava estratégias de redução de danos entre pessoas que usavam crack – o É de Lei havia acabado de ser contemplado em um edital da UNODC e Ministério da Saúde para desenvolver um projeto de prevenção às IST’s (infecções sexualmente transmissíveis) em contextos de festas. No ano de 2011, eu finalmente havia encontrado uma organização que trabalhava com as temáticas que tanto me faziam sentido.

Passei a trabalhar no Centro de Convivência É de Lei para coordenar um projeto que se tornou, após os Coletivos Balance e Balanceará, o Projeto ResPire, uma grande referência em contextos de festas construída ao longo dos anos.

O Centro de Convivência É de Lei é uma organização da sociedade civil que atua com redução de danos desde 1998. Acompanhou pessoas que usavam cocaína injetável e sua mudança da forma de administração injetada para a forma fumada; a equipe fez troca de seringas, atuou com as profissionais do sexo, com pessoas em situação de rua, usuárias de substâncias psicoativas, além de fazer a prevenção das IST’s usando sempre o vínculo e a convivência como as melhores estratégias de atuação. O prazer de fazer parte do primeiro centro de convivência do Brasil para pessoas que usam drogas é indescritível, pois a complexidade é enorme, mas a possibilidade de construir coletivamente o cotidiano destas pessoas é maravilhoso.

Durante os anos de 2011 a 2014 pude participar de projetos de pesquisa interessantes relacionados ao uso de substâncias, como por exemplo, a administração de ayahuasca em um contexto laboratorial, realizando entrevistas semiestruturadas das pessoas voluntárias do estudo e uma grande imersão no mundo da ibogaína, sendo esta utilizada no tratamento de pessoas com problemas decorrentes do abuso de substâncias. Entrevistei cerca de vinte e duas pessoas que estavam abstinentes após se tratarem com a ibogaína. Essas experiências foram importantes e contribuíram para identificar os potenciais terapêuticos dessas substâncias e me manter próxima da área acadêmica.

Após aproximadamente três anos longe do É de Lei (2014-2017), período em que pude experienciar trabalhar como Assessora de Políticas Públicas sobre álcool e outras drogas no poder público, coordenando projetos de direitos humanos para as pessoas que vivem em situação de rua e usuárias de substâncias psicoativas, além de fazer parte da coordenação colegiada intersetorial do Programa De Braços Abertos,  projeto de garantia de direitos humanos pautado na redução de danos. Senti que podia voltar para o É de Lei com uma bagagem ainda maior e poder contribuir para que pudéssemos ampliar nossas ações, incidir ainda mais nas políticas públicas, garantir a defesa dos direitos das pessoas que usam drogas e, principalmente, favorecer que as pessoas mais afetadas pela nefasta guerra às drogas ocupem lugares e possam exercer o direito da participação social.

Com esse pequeno relato, eu tentei expressar a respeito da relação entre a redução de danos em minha vida pessoal e profissional, sempre lembrando que a partir da RD (redução de danos) podemos lutar por mudanças estruturais que combatam o estigma, a desigualdade social, o racismo, o machismo e qualquer forma de discriminação de pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas.



[1] Maria Angélica Comis – psicóloga clínica, redutora de danos, mestre em Psicobiologia, especialista em Medicina Comportamental e Terapia Cognitiva Comportamental, foi Assessora de Políticas Públicas sobre álcool e outras drogas da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, professora universitária, coordenou o Projeto ResPire e atualmente é coordenadora de Advocacy e Comunicação do Centro de Convivência É de Lei. 


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

COLETIVO TEM SENTIMENTO: CUIDADO COM AS PESSOAS VULNERADAS DA REGIÃO DA LUZ


A populosa cidade de São Paulo, atualmente com mais de 11.869.660 pessoas sendo muitas advindas de outras regiões do Brasil e de várias outras partes do mundo é uma cidade paradoxal, onde a opulência caminha opostamente à miserabilidade: ao mesmo tempo onde estão concentrados os grandes bancos, o mercado financeiro em alta, as pessoas de classe econômica alta, estão também aquelas que vivem em estado de miserabilidade plena, ou seja, vulneradas, morando nas ruas da cidade. Dados oficiais de 2020, (embora controversos), apontaram um total de 24.344 pessoas, sendo que destas 11.693, vivem nos vários centros de acolhidas e 12.651 habitam as ruas; mais de 20% delas estão na região da Mooca e Centro da Cidade incluindo a região da Luz, local onde está inserida a denominada “Cracolândia”.

 A população que habita as ruas é fruto da desigualdade existente no país - além de invisíveis, são também excluídas pelas políticas públicas. Frente a essa dura realidade, vários movimentos religiosos, organizações não governamentais (ONGs) e coletivos acolhem e cuidam dessa população na cidade de São Paulo. Entre eles se destacam, na região da Luz, o Coletivo Tem Sentimento, fundado há aproximadamente quatro anos pela assistente social Carmen Lopes. Carmen, além de moradora da região, também trabalhou alguns anos como educadora social no Programa de Braços Abertos na região da Luz e conhece o território do centro como “a palma da sua mão”. Após sua saída do Projeto de Braços Abertos, resolveu por suas próprias forças e sem nenhum incentivo financeiro ter um pequeno espaço onde pudesse continuar cuidando das pessoas em situação de rua de forma humanitária, respeitosa e inclusiva. Assim nasceu o Coletivo Tem Sentimento, com o objetivo de atuar no território da Cracolância, junto à população dos moradores de rua, levando acolhimento, respeito, convite de autocuidado, cultura e atendimento as necessidades básicas dessas pessoas. Este coletivo ficou durante alguns anos sem local fixo para funcionar, mas atualmente está junto à companhia de Teatro Contêiner Mugunzá na Rua dos Gusmões, n. 43. Inúmeras ações já foram desenvolvidas no território: confecções de peças íntimas para as mulheres em situação de rua, atividades culturais com as pessoas em situação em vários locais da cidade dentre eles o Museu do Futebol, a participação do Blocolândia, bloco de carnaval composto pelas pessoas em situação de rua, distribuição de água, preservativos e alimentação às pessoas.

Carmen organiza ainda uma pequena oficina de costura onde as mulheres confeccionam camisetas, bolsas e outros materiais que são revertidos em renda para a sua própria subsistência e do coletivo . Além disso, antes da pandemia aos sábado pela manhã o Coletivo organizava encontros na Praça General Osorio de (auto ) cuidado com as mulheres em situação de rua, incluindo as transexuais, para cuidado em relação ao corpo, com cortes de cabelo, maquiagem, cuidado com as mãos, distribuição de roupas, dentre outros cuidados voltados a melhoria da autoestima dessas pessoas. Além disto, inúmeras rodas de conversas também eram realizadas aos sábados na praça, para escutar os anseios e sofrimentos das pessoas.

Durante a pandemia, o Coletivo Tem Sentimento continua trabalhando na confecção e distribuição de máscaras, distribuição de água e produtos de higiene e, junto a demais coletivos, oferece quinhentas refeições diárias às pessoas vulneradas sempre com muito acolhimento, respeito e ética, pois este grupo tem como princípio norteador de suas atividades a luta contra o preconceito, a estigmatização das pessoas em situação de rua e a defesa de seus direitos.

Autoras:

Carmen Lopes – Assistente Social, Fundadora e Coordenadora do Coletivo Tem Sentimento.

Eroy Aparecida da Silva - Doutora em Ciências-UNIFESP, Psicoterapeuta Familiar e Comunitária, Psicóloga - Associação Fundo de Incentivo a Pesquisa-AFIP, Pesquisadora na Área de Álcool e Outras Drogas - Ativista Social e Colaboradora Voluntária do Coletivo Tem Sentimento.

 


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Para além do desejo de cura: educação libertária para construir novos possíveis

   


Profa. Dra. Luciana Togni de Lima e Silva Surjus[1]

 

Em 2016, recém chegada como professora na Unifesp, vinda de uma trajetória de atuação na gestão de políticas públicas de saúde mental, propus que submetêssemos à finada Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad) um Centro Regional de Referência (CRR) pelo Campus. Vivíamos o constrangimento do governo de Dilma e como sempre, em minhas reações a crises, trabalhava freneticamente para descobrir os caminhos institucionais, enquanto perdia quase que diariamente interlocutores no governo federal, um a um sendo desligado ou desligando-se. Como já me alertava o amigo Leon Garcia, eu vinha de um ritmo da gestão, e teria problemas com os tempos da Universidade. Atravessando hierarquias desconhecidas, levando algumas broncas, mas sendo solidariamente acolhida, acabamos por morrer na praia: da ampliação de 50 CRR proposta pela Senad, creio que não tenha nascido nenhum.

Renomeado como Centro Regional de Formação (CRF) em Políticas sobre drogas e Direitos Humanos, esse espaço se estrutura há 3 anos como programa de extensão universitária, propondo práticas formativas emancipatórias enquanto estratégias de inovação social, gestado e gerido pelo Grupo de Pesquisa e Extensão DiV3rso: Saúde Mental, Redução de Danos e Direitos Humanos, composto por docentes, estudantes de graduação e pós graduação e comunidade do entorno.  As ações desenvolvidas visam a qualificação para diferentes políticas sociais de interface com a temáticas das drogas, envolvendo, principalmente, o compromisso com a transformação da realidade social que envolve as pessoas em uso problemático e em situação de vulnerabilidade, sob a perspectiva dos Direitos Humanos, garantindo formação acadêmica em consonância com a realidade local e os contextos reais de vida. O que se propõe é materializar o sonho de uma educação transformadora, intensificando a porosidade entre universidade e comunidade; entre alunas e docentes; entre trabalhadores e pessoas atendidas nos diferentes serviços dos municípios da Baixada Santista (Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Monguaguá, Peruíbe, Praia Grande, Santos e São Vicente).

Das transformações decorrentes do CRF ressaltamos a integração com as atividades de ensino na graduação, na curricularização da extensão, e a promoção de lugar protagonista das pessoas atravessadas pela criminalização de drogas de usos inscritos nos territórios vulnerados. A abordagem metodológica crítica e inventiva tem promovido modificações nas relações entre a universidade e as pessoas que vivem nas ruas de seu entorno, reconhecida enquanto COMUNIDADE, o que não se dá sem incômodos e resistências.

Tomando o desafio da permanência estudantil, fundamental para a sustentação de uma política de universalização do ensino superior, mote da existência do Campus Baixada Santista, visamos incidir na  diminuição das desigualdades que retiram o universo acadêmico do horizonte de grande parte da população, estabelecendo a captação de recursos como uma das metas dos participantes, no tocante à sustentação dessa experiência, o que vem ocorrendo de modo a dar materialidade à promoção de direitos. Explico: alunas e alunos, e membros da comunidade, com a oportunidade de contar com bolsas de extensão, numa legitimação do esforço afetivo e intelectual no desenvolvimento das ações. A captação de recursos é realizada de forma atenta e planejada por todo o coletivo, e tem sido exitosa junto a mandatos de parlamentares progressistas e iniciativas de apoio institucional à extensão.

Articulado a diferentes coletivos atuantes no campo do ensino e da redução de danos já desenvolvemos formações em parceria com a Fiocruz Brasília, Univesp, Centro de Convivência é de Lei, e recentemente numa inciativa totalmente virtual apoiada pela Abrasme, Reduc, Renfa, MBRD, Aborda, Intercambiantes BR/SP, Movimento Nacional de População em Situação de Rua e Jornal Vozes da Rua.

Publicamos dois ebooks que reúnem discussões acerca da RD, cotejadas com o registro dessas experiências locais[2], e mais recentemente já incluindo capítulos acerca da repercussão dessas ações sobre as histórias, contatas pelas próprias pessoas[3].

O envolvimento formal de pessoas da comunidade com histórias de uso de drogas e em situação de vulnerabilidade, promovem legitimação de sua experiência enquanto saber fundamental para avançar na construção de respostas que atendam às suas reais necessidades. Ampliando o que podem ser oportunidades e habilidades para o trabalho, há mobilidade do que é central na vida, engendrando inclusão por meio de lugares sociais de relevância. A metodologia provocou a lateralidade no processo de construção de conhecimento, apostando nas trocas e na diversidade de atores como estratégias para a transformação de todos os envolvidos, que passam a conviver num espaço comum, produzindo mundos possíveis, mitigando as barreiras das desigualdades que nos distanciam.

Atentos aos alertas de Oliveinstein acerca do cenário de mentiras que envolve a questão das relações problemáticas com drogas – ter de mentir que não gosta, ter que mentir que quer parar, ter que mentir que não usou, ter que mentir que parou -, temos vivenciado a construção das verdades que queremos para nós; descoberto o que queremos ser; e explicitado, de forma às vezes dolorosa, as grandes forças estruturais que nos impendem.

Atualmente, quando a pandemia assola os ventos da globalização, tem afetado, sobremaneira, diferentemente as diferentes populações e, para além de uma requentada concepção culpabilizante e individualizante de “grupos de risco”, amplificando a tensão entre posturas solidárias/democráticas e outras genocidas, fascistas, condizentes com a necropolítica em curso.

Se as medidas para minorar a repercussão comunitária da pandemia envolvem acesso preventivo a bens escassos e a sistemas universais, capilarizados e complexos, como propor a populações submetidas a condições indignas de moradia e trabalho, e mesmo aquelas que nem mesmo isso possuem, que se comprometam com ações de distanciamento social e higiene recorrente? Na busca pelos possíveis, há que se reduzir os danos aos não acessam água, itens de higiene, casa, privacidade, e que, do Estado, somente encontram respingos de violência e abandono. Que “vendem o almoço para comer na janta”; que “dão seus pulos” para vivenciar algumas poucas escolhas que impõem às suas invisíveis vidas. Muitas vezes, essas pequenas escolhas ou imposições são criminalizadas, num iato para alcançar justiça social. A emergência nos pede medidas rápidas de ampla proteção para efetivar o princípio de equidade. Com Paulo Freire, afirmamos: A educação não muda o mundo. A educação muda as pessoas. As pessoas mudam o mundo.

 

 



[1] Curso de Terapia Ocupacional - Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva - Coordenadora da Câmara de Extensão e Cultura Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP – BS - Coordenadora Região Sudeste - Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME - Presidente Conselho Municipal de Política sobre drogas de Santos – COMAD.

sábado, 6 de junho de 2020

Recaída e Recursividade – diferentes olhares para um mesmo fenômeno?


Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque [¹]  
Solange Aparecida Nappo [²]


Fonte: [3]
          Desde que nos deparamos no processo do meu doutoramento na Medicina Preventiva da UNIFESP (2013-2017) com as discussões e reflexões acerca do constructo teórico/clínico da “recaída”, venho tentando compreender melhor sobre tal questão, especialmente a respeito da insuficiência desta concepção biomédica e reducionista.  Consequentemente surgiu a defesa do uso do termo “recursividade”, pois chegamos à conclusão que o conceito de “recaída” não se associa acertadamente ao cuidado das pessoas que usam drogas, à luz da Redução de Danos (RD).
       Quando do objeto de pesquisa - “recaída no uso do crack” -, pudemos ampliar as reflexões em relação a quaisquer substâncias psicoativas, visto que, embora os tratamentos disponíveis tragam uma diminuição da gravidade dos problemas psicossociais causados pelo uso abusivo ou problemático de drogas, nenhum tratamento conseguiu “resolver” a “recaída” no seu sentido implícito: haja vista que só recai quem parou de usar!
        Assim, buscando ampliar o conhecimento sobre o tema, a tese, que foi de caráter qualitativo, teve como objetivo investigar o fenômeno da “recaída” junto às pessoas que abusavam do crack e que estivessem em fase final de tratamento, mas também que vivenciaram episódios de “recaídas” para perguntarmos sobre os motivos desencadeadores desse processo.
        O campo da pesquisa se deu em três espaços de cuidado: os Centros de Atenção Psicossociais em álcool e outras drogas (Caps AD), as Comunidades Terapêuticas (CT) e as Clínicas Médicas (CM). Apesar de não ser o foco da pesquisa, foi impressionante observarmos, enquanto dados secundários, que o proibicionismo e o antiproibicionismo, e também modelos diversos de tratamento transpassavam os espaços que teoricamente não seriam afeitos àquele paradigma. Assim, nos deparamos com Caps proibicionistas e com CT’s antiproibicionistas, Clínicas Médicas psicossociais e Caps biomédicos. A incongruência teórica entre as práticas foi algo que acabou sendo muito observado (Rameh-de-Albuquerque, 2017).
             Entrevistamos 120 pessoas divididas igualmente entre Recife - PE e São Paulo – SP; considerando-se também as regiões metropolitanas. As categorizações que emergiram das narrativas dos entrevistados foram divididas em três blocos temáticos: motivos associados às pessoas (MP), motivos associados à droga (MD), motivos associados ao ambiente (MA) (Rameh-de-Albuquerque, 2017). Destes, as motivações mais citadas, pertenceram à categoria dos MP, sendo mais expressivas as dificuldades e/ou inabilidades das pessoas em lidarem com suas emoções, reduzindo a compreensão hegemônica de que os motivos associados à droga são o maior fator para “recaída” (Rameh-de-Albuquerque e Nappo, 2018).
         Outro destaque revelado foi justamente o que coloca o conceito de “recaída” em cheque: inapropriado para a compreensão do fenômeno da repetição à luz da Redução de Danos. Quando captamos a Teoria da Complexidade (Maturana 1980, Morin, 2000), para pensarmos sobre o fenômeno, podemos considerar o princípio da recursividade como ponto de partida fundamental a um outro olhar sobre esse processo.
              Observamos que a maioria dos autores que estudam a “recaída” ainda trabalha com o conceito de modo linear. Mesmo aqueles que não esperam a “recaída” como um fenômeno comum e que estudam e trabalham com a redução de danos findam por se referir às pessoas que usam drogas como àqueles que “recaem” (Rameh-de-Albuquerque, 2017). Pois bem, se na Redução de Danos as pessoas podem fazer escolhas em minorar seus problemas decorrentes do uso de drogas, sem necessariamente impedir esse processo, a abstinência passa a ser uma das opções, porém não será a única opção. Já no constructo da “recaída”, a abstinência é a meta sempre buscada, o que torna essa concepção inviável para aqueles que compreendem o uso de drogas como uma possibilidade para as pessoas que não querem ou não podem parar de usar substâncias.
         Assim, a recursividade que é “[...] o movimento inerente a todos os seres vivos impulsionando- os para mudanças em seu próprio sistema ou na interação com outros sistemas” (Rameh-de-Albuquerque, 2017, p.22) passa a ser o processo previsto para parte das pessoas que usam drogas em suas possibilidades de ser e estar no mundo.
Outra reflexão reflete sobre alguns aspectos comumente negligenciados pelos profissionais e cuidadores em geral: durante o tratamento, os processos intersubjetivos referentes aos movimentos recursivos das pessoas indicam os aprendizados e ressignificações diante do abuso de drogas, independentemente dos modelos aos quais as instâncias de cuidado estejam filiadas. Por vezes, o tratamento é “zerado” quando a pessoa tem lapsos, recai ou usa novamente a droga.
              Caso os profissionais e cuidadores operem à luz da RD, a recursividade passa a ser um princípio ancorado na possibilidade de uso da substância e não da abstinência total, sem que tal questão não faça perder todo o tratamento já investido, realizado ou mesmo as aprendizagens conquistadas, visto que essas poderão fazer sentido a qualquer tempo para a pessoa: “A recursividade acaba por apontar um processo de autoconhecimento, no qual a cada repetição do uso de drogas, a pessoa experimenta outras possibilidades de desfecho para o que está vivenciando” (Rameh-de-Albuquerque e Nappo, 2019, p 154).
               Esperamos, de modo ousado, que tais reflexões possam contribuir para a melhoria da atenção prestada às pessoas que buscam tratamento, especialmente quanto à mudança de visão e prática clínica dos profissionais e cuidadores que estão no “corpo a corpo” do cuidado junto às pessoas que abusam das drogas.

Referências:

Maturana, H.R & Varela, F.J. (1980). Autopoieses anda cognition: the realization of the living. Boston: Reidel.

Morin, M. (2000). Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS. Para navegar no século XXI: Tecnologias do Imaginário e Cibercultura. Porto Alegre: Edipucrs, p. 1-27.

Rameh-de-Albuquerque, R. C. (2017). Da pessoa que recai à pessoa que se levanta: a recursividade
dos que usam crack. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. São Paulo, UNIFESP.

Rameh-de-Albuquerque, R. & Nappo, S. (2018), Reasons to crack consumption relapse. Users’ perspective. Rio de Janeiro: Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 67(3):194-200.

Rameh-de-Albuquerque, R. C. e Nappo, S. A. Padrão de consumo de drogas com ênfase no crack e a recursividade deste padrão. In: Fraga, P. e Carvalho, M. C. (Orgs). Drogas e sociedade: estudos comparados Brasil e Portugal. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019.

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[1]  Redutora de Danos. Psicóloga do IFPE, tutora do Mestrado em Psicologia da Saúde e da graduação em Psicologia da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Pesquisadora do GEAD/UFPE. Membro do Intercambiantes, ABRASME, ABRAMD e ABRASCO.

[2] Farmacêutica. Docente do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora do CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Departamento de Ciências Farmacêuticas.

[3] 
https://www.google.com/search?q=recursividade&sxsrf=ALeKk03OUGcvEhiH7lU3Jb6246k0PuQR_A:1590620424052&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjpiOTqktXpAhUBDrkGHXrEARwQ_AUoAXoECBMQAw&biw=1366&bih=575#imgrc=72pH7WP1CI3C_M

Programa Atitude: uma outra possibilidade de cuidado

                                                                                                                            Malu Freire [1] ...