quinta-feira, 5 de março de 2020

Se as drogas fossem animais ferozes, subir no muro poderia ser a salvação! [1]


Prof. Dr. Antonio Nery Filho[2]

Às vezes sou invadido por um grande e espantoso desânimo: pessoas de diversas formações, ocupando ou não postos importantes nos poderes públicos, dizem o que bem querem e entendem sobre diversas questões, e mais, quando podem, viram tudo de cabeça para baixo, sem a menor consideração pelo trabalho longo e difícil de tantas e tantos profissionais pelo Brasil. Recentemente, temos sofrido injunções de governantes obtusos e profissionais da saúde que só acreditam em ‘evidencias’,  alardeados por uma mídia mal informada ou conivente. Gente que parece nunca ter ido ao teatro, desqualifica a cultura, atores e atrizes, e acha que livro é um amontoado de baboseiras; gente que não considera índios como sujeitos de direito (e, talvez, nem considere, também, pretos, travestis, drogados, como gente ou, no máximo gente de ‘segunda categoria’).

Infelizmente, muitas condutas humanas de difícil compreensão pela medicina, psicologia ou pela socioantropologia, tem merecido opiniões de todo mundo. Estou pensando, por exemplo, nas informações sobre sexo para adolescentes, nas escolas; no aborto; nos casamentos homoafetivos; no consumo de drogas ilícitas.

Não vejo, nem escuto, aconselharem os médicos cirurgiões, dentistas, pilotos dos colossais aviões, ou engenheiros, como devem conduzir seus afazeres. Chego à conclusão de que certos ramos da ciência ou algumas atividades humanas estão protegidos dos “bedelhos de toda ordem”, enquanto outros estão sujeitos ao ‘achismo’, não raro disfarçado de saber científico.

No que me diz respeito, esclareço que fui diplomado em medicina há quase cinquenta anos. Neste longo tempo, trabalhei no antigo Manicômio Judiciário, hoje Casa de Custódia e Tratamento, em Hospital psiquiátrico, em consultório privado durante 35 anos. Entrei para a Universidade Federal da Bahia em 1980, onde fui Professor de Psiquiatria Forense, de Ética Médica e Bioética, na bicentenária Faculdade de Medicina, onde criei em 1985, o Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas - CETAD, serviço especializado no acolhimento de pessoas usuárias de álcool e/ou outras drogas, e seus familiares. Trabalhei durante dez anos com o Professor Claude Olievenstein, fundador do Centre Médical Marmottan, de Paris; fiz especialização  em psiquiatria no Hôpital Saint’Anne, em Paris, e obtive o título de Assistant Etranger, na Université René Descartes, Paris V- Sorbonne. Conclui o Doutorado na Faculdade de Sociologia e Ciências sociais, da Universidade Lyon 2, com o Prof. François Laplantine. Fui conselheiro Regional de Medicina durante quinze anos. Um tanto constrangido menciono estes dados pessoais para deixar claro que me associo a muitos professores(as), psiquiatras, psicólogos(as), assistentes sociais, sociólogos(as) e antropólogos(as), de diversas regiões do Brasil. Somos centenas de  profissionais forjados(as) no trabalho diário, especializados(as) no acolhimento e cuidado de pessoas portadoras de sofrimento psíquico, usuárias ou não de produtos psicoativos; somos defensores e defensoras dos Direitos Humanos e, em especial, daqueles e daquelas mais vulnerados da sociedade. Nenhum de nós propõe o uso de qualquer produto psicoativo, legal ou ilegal, se não for para o benefício dos pacientes. Sabemos que não há produto químico sem efeitos bons e ruins - o Pharmakon - tudo depende das circunstâncias nas quais os humanos se encontram e dos usos que deles fazem. Não são os produtos químicos que determinam os humanos, são os humanos que decidem usar este ou aquele produto, em razão de sua história pessoal. Aliás, lembremos que esta história é múltipla: biológica, psíquica e social. Quando alguém diz ter “usado drogas, inicialmente a maconha, depois cocaína, cercado de ‘mimos familiares’, e tendo perdido o controle”, há de se reconhecer aí uma declaração humana. Ninguém poderá dizer ‘a droga me usou... porque a droga sofria e estava triste e solitária...’ Droga não nasce, não tem pais, não tem personalidade; droga não ama e é ‘desamada’; droga não faz planos; as droga não fracassam, não sonham, não morrem, não têm medo. As drogas não fazem coisas que são privilégios dos humanos. Portanto, não faz sentido curar apenas os efeitos das drogas; deve-se cuidar dos humanos, considerando seus direitos, autonomia e liberdade. Lembremos aos que sabem e indiquemos aos que não sabem, que as drogas produzem sempre os mesmos efeitos, mas, cada pessoa, encontrará a ou as drogas de modo único e, para cada usuário(a), quando solicitado,  será construído um plano terapêutico, que deverá funcionar ‘de dentro para fora’ e nunca, imposto autoritariamente. Neste sentido, a redução de danos, enquanto estratégia clínica, significa entrar na história do(a) usuário(a) para ajudá-lo(a) na travessia de um tempo de muita dor e sofrimento, para um outro tempo, construído com e não construído para. Noutro sentido, a redução de danos enquanto política pública, significa estar inserida na dimensão dos Direitos Humanos e da Bioética, campos onde se busca produzir e sustentar pactos para e pela vida. Há um engano frequentemente difundido pela mídia: não defendemos a liberação da maconha ou de outros psicoativos ilícitos; não defendemos somente a descriminalização do porte para consumo próprio. Defendemos a legalização de todos os produtos, hoje ilícitos, para que o Estado possa exercer seu papel regulador e fiscalizador.  A legalização-regulação-fiscalização, seguramente, desmontará a monstruosa máquina econômica ligada ao tráfico, mecanismo corruptor universal, produtor de violência e morte. A legalização é da ordem jurídico-legal; o consumo, problemático ou não, é da ordem clínico-pessoal-social. Sabemos cuidar dos que buscaram ou encontraram nas drogas alternativas para suas vidas; alternativa não quer dizer, necessariamente, uma boa solução. Refiro-me aqui ao restrito grupo dos dependentes químicos “verdadeiros”, isto é, aqueles que foram utilizando seu ‘cheque especial de tempo vida’, para viver suas dores! Os demais usuários - como nos mostraram os trabalhos epidemiológicos do Prof. Elisaldo Carlini - e mais recentemente da FIOCRUZ - são os consumidores experimentadores, os consumidores eventuais, os usuários recreativos e aqueles cujo uso é controlado e adaptado. Lembremos, ainda, que os(as) consumidores(as) eventuais, controlados, são a esmagadora maioria. As pessoas que fazem uso incontrolado, dependente, de produtos químicos ilícitos, são uma minoria e - para falar da droga demonizada, o crack - temos indicações científicas seguras, da grande restrição deste produto aos mais vulnerados da sociedade brasileira, aqueles e aquelas cuja existência só é possível nos esgotos, para escapar da morte, ou se reunindo, em praças e ruas, inadequadamente chamadas de ‘Cidades do Crack (Cracolândias). Por que a mídia e os’ fazedores de leis e de opiniões’ não se debruçam sobre os sólidos trabalhos que evidenciam estes espaços como lugares de solidariedade e compartilhamento? Por que só enxergam sujeira e violência? Antonio Lancetti afirmava que as ‘Cracolândias existem por uma indiscutível necessidade social: é para lá que vão os que deixam as cadeias, ou que perderam os laços familiares, os portadores de transtorno mental, abandonados, os que não têm lugar algum para onde ir...’. 

Indiscutivelmente, é de amplo conhecimento que há riscos maiores e menores para a saúde e, portanto, para a vida, no uso de produtos psicoativos. Os mariscos são um risco para os alérgicos; a aspirina pode matar; andar de bicicleta não é um ato sem grandes riscos. Aliás, em um país cuja apologia às armas e aos ‘homicídios justificados’ são anunciados como solução, é um risco viver. Evidentemente, cabe informar a uns e a outros sobre todos estes riscos.

É necessário, e mesmo indispensável, desenvolver de modo permanente,  mecanismos de informação e, portanto, de prevenção e proteção do uso de psicoativos, do uso de bikes e motos. Há de se reduzir os riscos de atropelamento pela educação de pedestres e motoristas: uns para atravessarem nas faixas, outros, para respeitarem as faixas. Não há de se proibir bikes e motos nem suprimir as faixas e os pedestres! Foi neste sentido que os usuários de drogas injetáveis encontraram a proteção dos governos da Suíça e Holanda, inicialmente, seguidos por muitos outros países, dentre os quais Portugal e Espanha, através das ‘salas de uso protegido’, que considero inadequado chamar de salas de ‘uso seguro’. Não há, a princípio, uso seguro de qualquer produto químico. Aliás, alguém pode afirmar que viver é seguro? Para viver,  é necessário proteger, incessantemente, a vida. As salas de uso protegido, permitem os encontros acolhedores, o estabelecimento de relações respeitosas e o cuidado das eventuais doenças físicas e psíquicas. Alguns, manterão o uso; para estes, haverá, sempre uma porta aberta; outros, reduzirão o consumo e poderão construir alternativas eficazes, outros podem até adotar a abstinência, mas, todos e todas serão reconhecidos e reconhecidas como cidadãos e cidadãs plenos e plenas, livres para conduzirem suas vidas. Foi pensando assim que foi criado na Bahia, pelo CETAD/UFBA, os Consultórios de Rua, no âmbito da saúde mental, hoje substituídos pelos Consultórios na Rua, vinculados à Atenção Básica em Saúde. Uma pena que os dois campos não tenham se entendido e mantido as duas atividades. 

Aos profissionais da saúde e do social cabe, enquanto servidores técnicos, sustentarem ‘o bom trabalho’, particularmente junto ‘à gente de rua’.

No que tange à saúde, incluindo as questões relacionadas com as drogas - lícitas e ilícitas - graças às Reformas Sanitária e Psiquiátrica, o Brasil encontrou duas alternativas reconhecidamente eficazes: o Programa de Saúde da Família (PSF) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em suas diversas modalidades e áreas de atuação (infanto-juvenil, adulto e drogas). Lamentavelmente, ambas atravessam período de desmonte e abandono, sob o argumento de ‘ineficazes’, quando, em verdade, carecem de recursos materiais e humanos na dimensão das reais necessidades das populações. Suprime-se o oxigênio para justificar que o paciente respira mal? O Brasil necessita, urgentemente, voltar seus olhos para o Sistema Único de Saúde e, através dele, cuidar, de fato, das populações mais frágeis e vulneradas, a exemplo dos(as) profissionais do sexo, travestis e pessoas em situação de rua, usuárias ou não de drogas legais e/ou ilegais.

A Política de Drogas do Brasil não pode, no dizer do Professor João Mendes, “continuar sendo medieval, quando se tem, hoje, um problema contemporâneo”. Medieval, no sentido de sustentar políticas públicas entendendo o consumo de drogas como uma ‘dominação demoníaca’, para a qual cabe exorcismos de caráter religioso, tratamentos em hospitais que excluem, ou aprisionamentos em cadeias, que estigmatizam, em lugar de considerar as novas configurações sociais e os novos sofrimentos humanos, dando aos serviços públicos adequadas condições de trabalho, dotando-os de recursos humanos e materiais, orientados por tecnologias sensíveis e humanistas.



[1]Este texto foi escrito, tendo em vista o artigo do Senhor Carlos Alberto Di Franco, no ‘O Estado de S. Paulo’, 13 de janeiro de 2020, sob o título: ‘Drogas - não dá para ficar em cima do muro. Não se pode sucumbir à síndrome de avestruz, o que está em jogo é a vida das pessoas’.
[2]Médico. Psiquiatra. Professor Aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e da Secretaria Estadual de Saúde. Fundador e Coordenador do CETAD/UFBA (1985-2013). Consultor da Secretaria  de Saúde de Salvador. Professor convidado da Defensoria Pública da Bahia/Direitos Humanos e da Faculdade Baiana de Direito. 

Programa Atitude: uma outra possibilidade de cuidado

                                                                                                                            Malu Freire [1] ...