segunda-feira, 12 de abril de 2021

Sinais da chamada Contra-Reforma Psiquiátrica

 


Altieres Edemar Frei[1]

 

Percebe-se o avanço da chamada Contra-Reforma Psiquiátrica[2] por diversos pontos de vista. É uma pena, mas os sinais parecem estar em toda parte. Quase dá pra perder as contas: por mais que o debate sobre a luta antimanicomial e suas calibragens com o antiproibicionismo e antirracismo pareçam enfim, terem ganhado eco em outras parcelas da sociedade, a maré definitivamente não está pra peixe.

 

Primeiro sinal disso é a dotação orçamentária cada vez mais robusta de recursos públicos em instituições asilares: quem conhece as Comunidades Terapêuticas[3] não estranha mais o milheiro de blocos ou o metro de areia e pedra dando indícios da expansão do negócioincluindo o 'puxadinho' para adolescentes. Obras a todo vapor. As diárias compensam e, assim, vem mais beliche por aí!

 

Outros sinais mais pulverizados estão em esquinas do bairro -- o meu, e talvez o seu. Lembro do tempo em que morava onde tinha vários botecos ou igrejas em cada esquina. Hoje são farmácias, redes que não param de expandir seus negócios e franquias. É domingo, e tem alguma drugstore aberta agora, com aquele monte de lâmpada branca e ar refrigerado. Tá entediado? Vai uma vitamina aí?

 

São redes que escancaram o poderio do império farmacêutico no maior consumidor mundial de ansiolíticos. Yes, nós temos Clonazepan! Ali, agora, salgadinhos, refrigerantes e dipironas estão ao alcance das mãos e, com isso, tanto eu, quanto você e sua vizinha sabemos o quanto alprazolans, fluoxetinas, venlafaxinas ou derivados do tipo caem no gosto popular: tem para diferentes públicos e faixas etárias. Já tomou um desses, vizinho?

 

Nesse cenário naturalizado”, as medicações psicotrópicas ou de tarja preta tem apelo cada vez maior às pessoas que apresentam algum tipo de sofrimento psíquico. Tá logo ali, basta sua receita, com ou sem Cebolitos, com ou sem indicação de psicoterapia. Com isso, o discurso sobre as alteridades parece, cada vez mais, revestido de nomes de doença e, não raro, pessoas saem satisfeitas de consultórios psiquiátricos dizendo: sabia que era bipolar, por isso sou assim, agora sei quem sou eu.

 

Dá-lhe identidades: diagnósticos caem bem em tempos como estes e, paradoxalmente, aliviam questões existenciais. É como conseguir explicar os dilemas da vida por ser gêmeos com ascendente em aquário”. Não que eu duvide que isso possa ser problemático, mas daí a somar dois mais dois e explicar toda a existênciaNão parece ser tão simples. Ou não dura muito. Qual seu CID hoje?

 

Dizem que política é mesmo uma questão de percepção.

 

Volto aos sinais da contra-reforma psiquiátrica: você tem lido as notícias sobre a atenção primária em saúde? Viu o que estão fazendo com os CAPS e a lógica da atenção psicossocial? E essa de internar adolescentes a rodo” em Comunidades Terapêuticas? Resta-nos anotar os sinais, fazer as contas e manter a mente quieta, a espinha ereta e, se der pra seguir a canção, o coração tranquilo em meio à luta para que algo se mantenha em pé diante toda tempestade fascista que parece querer nos tratorar -- e, claro, afinar nossos instrumentos, tendo em vista que se é pra fazer “luta antimanicomial” sem meter o pé na porta na Guerra às Drogas, parece melhor continuar no coma em clubinhos monárquicos repetindo discursos repletos de naftalina, à espera dos carguinhos ou minutos de fama no dezoito de maio.

 

Volto aos sinais que estão por aí: vi mais outro dia desses (e esse quase me arrancou os olhos da cara), quando estava no supermercado que inaugurou ano passado perto de casa. Não tinha entrado lá até semana passada por conta do privilégio de ter sido quarentener-raiz, até que consegui tomar uma das controversas doses da vacina Astrazeneca-Oxford destinada aos trabalhadores autônomos de clínicas cá na republiqueta curitibana -- predicado que seria risível, não fosse trágico ou sintomático.

 

Foi mesmo um experimento ter ido no tal supermercado novo: atrofiado de convívio social e relativamente vacinado, flanei trêmulo entre corredores largos, vaporizador no setor de verdura, caixas do tipo pague você mesmoe amplo espaço. Me esforçava para fazer de conta que estava sempre por ali e tentava superar o meu pânico e lidar com tantas luzes. Me esforçava para fazer contas com novos números na cara: um quilo de feijão agora, oito contos. Dez pãezinhos agora, sete contos.

 

Continuava com as contas todas ali no setor de produtos veganos quando apareceu um moleque, da idade do meu filho mais velho, voltando de alguma peleja futebolística, carregando com ar blasé seus danoninhos de dois dígitos. Ele trajava um fardamento branquinho: meião, calção e camisa de futebol. Sempre reparo qualquer camisa de time. Nem penso. É automático. Parei pra ver se era de um time conhecido aqui da vila, mas não reconheci nem escudo. Só reparei no patrocínio: Clínica Psiquiátrica Heidelberg, em letras garrafais.  

 

Quase cocei os olhos por trás dos óculos por cima da máscara, mas lembrei que não tinha passado álcool gel fazia quase três minutos. Um time infantil patrocinado por uma clínica psiquiátrica de grande poderio econômico em Curitiba, sede inclusive de residências em psiquiatria: alô justiça da infância e juventude, artigo 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente! Pode isso, produção?

 

E tudo parecia naturalizado, com aquela música de elevador, como aqueles hambúrgueres veganos de soja transgênica em meio às geladeiras futuristas, com o moleque sem sorriso: até ornava.

 

Sinais dos tempos, pensei comigo, antes de voltar às contas. E penso nisso até agora.



[1] Altieres Edemar Frei, psicólogo clínico (CRP PR 08-20211), concluiu doutoramento em ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e mestrado em psicologia clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. Atualmente trabalha em clínica tateando esquizoanálise enquanto dobra da psicanálise, em docência e como assessor de pesquisas no CRP PR. É autor de Todo Educador é Social” (Editora Intersaberes, 2019) e de artigos nas temáticas: luta antimanicomial, cartografia da RAPS, antiproibicionismo e biopolítica. Contatos: altieresfrei@gmail.com

[2] A Contra-Reforma Psiquiátrica aqui se faz definida como o processo que aponta para os desmontes nas quatro dimensões da Reforma Psiquiátrica, tal qual indicada por Amarante (2007), a saber: i) a dimensão dos equipamentos substitutivos, com o recuo de serviços estratégicos e a estagnação do investimento em novos serviços, especialmente na atenção primária em saúde; ii)  a dimensão jurídica, com seus retrocessos e ameaças de revogação de leis, portarias e marcos legais; iii)  a dimensão técnico-assistencial com a formação de profissionais regidos por paradigmas tecnocráticos, de pouco acúmulo curricular no âmbito de políticas públicas e garantia de direitos e sem supervisões clínico-institucionais; e iv) a dimensão sociocultural, com a perpetuação cada vez mais crescente de novas réguas de normalidade no discurso vigente e medicalização das alteridades.

[3] As Comunidades Terapêuticas no Brasil dista em muito do seus projetos originais e contra-culturais idealizados por Maxwell Jones e seus sucessores nos idos dos anos 1950 em meio à crítica das instituições asilares mundo afora. Aqui, em parte pelo atraso com que tivemos para encarar o debate antiproibicionista inclusive no meio antimanicomial -- um mea culpa necessário -- essas instituições  se firmaram como único espaço de cuidado além do manicomial até a instalação dos CAPS AD e foram aparelhadas em sua maioria por projetos atravessados por dogmas e retificações de caráter comuns às religiosidades neopentecostais, em uma disputa de mercado de bens de salvação.

Programa Atitude: uma outra possibilidade de cuidado

                                                                                                                            Malu Freire [1] ...