Altieres Edemar Frei[1]
Percebe-se
o avanço da chamada Contra-Reforma Psiquiátrica[2] por diversos pontos de vista. É uma pena, mas
os sinais parecem estar em toda parte. Quase dá pra perder as contas: por mais
que o debate sobre a luta antimanicomial e suas calibragens com o
antiproibicionismo e antirracismo pareçam enfim,
terem ganhado eco em outras parcelas da sociedade, a maré definitivamente não está pra peixe.
Primeiro
sinal disso é a dotação orçamentária cada vez mais robusta de recursos públicos em instituições asilares: quem
conhece as Comunidades Terapêuticas[3]
não estranha mais o milheiro de blocos ou o metro de
areia e pedra dando indícios da expansão do negócio — incluindo o
'puxadinho' para adolescentes. Obras a todo vapor. As diárias compensam e, assim, vem mais beliche por aí!
Outros
sinais mais pulverizados estão em esquinas do bairro
-- o meu, e talvez o seu. Lembro do tempo em que morava onde tinha vários botecos ou igrejas em cada esquina. Hoje são farmácias, redes que não param de expandir seus
negócios e franquias. É domingo, e tem alguma drugstore aberta
agora, com aquele monte de lâmpada branca e ar
refrigerado. Tá entediado? Vai uma vitamina aí?
São
redes que escancaram o poderio do império farmacêutico no
maior consumidor mundial de ansiolíticos. Yes, nós temos Clonazepan! Ali, agora, salgadinhos, refrigerantes
e dipironas estão ao alcance das mãos e, com isso, tanto eu, quanto você e sua vizinha sabemos o quanto alprazolans, fluoxetinas, venlafaxinas ou derivados do tipo caem no gosto popular: tem para diferentes públicos e faixas etárias. “Já tomou um desses, vizinho?”
Nesse
cenário “naturalizado”, as medicações psicotrópicas ou de tarja preta tem apelo cada vez maior às pessoas que apresentam
algum tipo de sofrimento psíquico. Tá logo ali, basta
sua receita, com ou sem Cebolitos, com ou sem indicação de psicoterapia. Com
isso, o discurso sobre as alteridades parece, cada vez mais, revestido de nomes
de doença e, não raro, pessoas saem satisfeitas de consultórios psiquiátricos dizendo: “sabia que era
bipolar, por isso sou assim, agora sei quem sou eu”.
Dá-lhe
identidades: diagnósticos caem bem em tempos como estes e,
paradoxalmente, aliviam questões existenciais. É
como conseguir explicar os dilemas da vida por ser “gêmeos com ascendente em aquário”. Não que eu duvide que isso
possa ser problemático, mas daí a somar dois mais dois e explicar toda a existência… Não parece ser tão simples. Ou não dura muito. “Qual seu CID hoje?”
Dizem
que política é mesmo uma questão de percepção.
Volto
aos sinais da contra-reforma psiquiátrica: você tem lido as notícias sobre a atenção primária em saúde? Viu o que estão fazendo com os CAPS e a lógica da atenção psicossocial? E essa de internar adolescentes “a rodo” em Comunidades Terapêuticas? Resta-nos anotar os sinais, fazer as contas e manter a mente quieta, a
espinha ereta e, se der pra seguir a canção, o coração tranquilo em meio à luta para que algo se mantenha em pé diante toda tempestade
fascista que parece querer nos tratorar -- e, claro, afinar nossos
instrumentos, tendo em vista que se é pra fazer “luta antimanicomial” sem meter
o pé na porta na Guerra às Drogas, parece melhor continuar no coma em clubinhos
monárquicos repetindo discursos repletos de naftalina, à espera dos carguinhos
ou minutos de fama no dezoito de maio.
Volto aos sinais que
estão por aí: vi mais outro dia desses (e esse quase me
arrancou os olhos da cara), quando estava no supermercado que inaugurou ano passado
perto de casa. Não tinha entrado lá até semana passada por conta do “privilégio de ter
sido quarentener-raiz”, até que consegui tomar
uma das controversas doses da vacina Astrazeneca-Oxford destinada aos
trabalhadores autônomos de clínicas cá na republiqueta curitibana -- predicado que seria risível, não
fosse trágico ou sintomático.
Foi
mesmo um experimento ter ido no tal supermercado novo: atrofiado de convívio social e relativamente vacinado, flanei trêmulo entre corredores largos, vaporizador no
setor de verdura, caixas do tipo “pague você mesmo” e amplo espaço. Me esforçava para fazer de conta
que estava sempre por ali e tentava superar o meu pânico e lidar com tantas luzes. Me esforçava para fazer contas com novos
números na cara: um quilo de feijão agora, oito
contos. Dez pãezinhos agora, sete
contos.
Continuava
com as contas todas ali no setor de produtos veganos quando apareceu um
moleque, da idade do meu filho mais velho, voltando de alguma peleja futebolística, carregando com ar blasé seus danoninhos
de dois dígitos. Ele trajava um fardamento branquinho: meião, calção e camisa de futebol. Sempre reparo qualquer camisa de time. Nem
penso. É automático. Parei pra ver se era de um
time conhecido aqui da vila, mas não reconheci nem
escudo. Só reparei no patrocínio: “Clínica Psiquiátrica Heidelberg”, em letras garrafais.
Quase
cocei os olhos por trás dos óculos por cima da máscara, mas lembrei que
não tinha passado álcool gel fazia quase três minutos.
Um time infantil patrocinado por uma clínica psiquiátrica de grande poderio econômico em
Curitiba, sede inclusive de residências em
psiquiatria: alô justiça da infância
e juventude, artigo 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente! Pode isso,
produção?
E
tudo parecia naturalizado, com aquela música de elevador, como aqueles hambúrgueres veganos de soja
transgênica em meio às geladeiras
futuristas, com o moleque sem sorriso: até ornava.
“Sinais dos tempos”, pensei comigo, antes de voltar às contas. E penso nisso até agora.
[1] Altieres Edemar Frei,
psicólogo clínico (CRP PR 08-20211), concluiu
doutoramento em ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo e mestrado em psicologia clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade
da PUC-SP. Atualmente trabalha em clínica tateando esquizoanálise enquanto dobra da psicanálise, em docência
e como assessor de pesquisas no CRP PR. É autor de “Todo Educador é Social”
(Editora Intersaberes, 2019) e de artigos nas temáticas: luta antimanicomial,
cartografia da RAPS, antiproibicionismo e biopolítica. Contatos: altieresfrei@gmail.com
[2]
A Contra-Reforma Psiquiátrica aqui se faz definida como o processo que aponta
para os desmontes nas quatro dimensões da Reforma Psiquiátrica, tal qual
indicada por Amarante (2007), a saber: i) a dimensão dos equipamentos
substitutivos, com o recuo de serviços estratégicos e a estagnação do
investimento em novos serviços, especialmente na atenção primária em saúde;
ii) a dimensão jurídica, com seus
retrocessos e ameaças de revogação de leis, portarias e marcos legais;
iii) a dimensão técnico-assistencial com a
formação de profissionais regidos por paradigmas tecnocráticos, de pouco acúmulo
curricular no âmbito de políticas públicas e garantia de direitos e sem supervisões clínico-institucionais; e iv)
a dimensão sociocultural, com a perpetuação cada vez mais crescente de novas réguas de normalidade no
discurso vigente e medicalização das alteridades.
[3] As Comunidades Terapêuticas
no Brasil dista em muito do seus projetos originais e contra-culturais
idealizados por Maxwell Jones e seus sucessores nos idos dos anos 1950 em meio à
crítica das instituições asilares mundo afora. Aqui, em parte pelo atraso com
que tivemos para encarar o debate antiproibicionista inclusive no meio
antimanicomial -- um mea culpa necessário -- essas
instituições se firmaram como único
espaço
de cuidado além do manicomial até a instalação dos CAPS AD e
foram aparelhadas em sua maioria por projetos atravessados por dogmas e
retificações de caráter comuns às religiosidades neopentecostais,
em uma disputa de mercado de bens de salvação.
acredito que viver sobe o efeito de psicotrópicos. Sai caro demais para a mente humana! Devemos crer na palavra dos psiquiatras,quando no levam ao mundo deles.
ResponderExcluir!
No entorno do CEU na periferia de São Paulo onde trabalho, há uma vasta propaganda de comunidades terapêuticas advindas de algumas igrejas que estão na comunidade, com apelos bastante convincentes e comoventes para muitos que ali não tem uma rede de apoio, isto se reflete na saída que os adolescentes e famílias encontram para encararem essas e outras questões tão bem colocadas neste artigo, tendo a internação como a única e grande salvação e apoiando a internação de adolescentes e tantas outras práticas com viés proibicionistas e desumanas.
ResponderExcluirRubens, meu querido!!
ResponderExcluirEnvio sinais de fumaça aqui do Cratod recém incendiado...
A formação tecnocrática está fadada ao fracasso suicida do proibicionismo cristão.
Falta saúde para o SUS seja SUStentável. E haja reforma!!!
Recebo seus sinais, e, vejo nessa bruma, nesse fumo, esse atavismo religioso travestido de cuidado, mas com função de ortopedia moral, de sujeição e retirada de possibilidade de existência hedonista...
ExcluirÓtimo texto!
ResponderExcluirMas triste sinal dos tempos... tempos em que a saúde mental recebe um "crédito" outro que não é o da Saúde, se equiparando a BTGs, Crefisa's e Betsul's da vida... ou da morte. Me consolei quando li o seu "não coçar dos olhos", Altieres. Em vc alguma esperança de não contaminação em meio a tanto descuido!