Conversando com Nery

"Até quando MS/BR, abusarás de nossa paciência?"


O Governo Federal do Brasil recusou todas as oportunidades para compra de vacinas, tendo em vista a pandemia pelo Novo Coronavírus. Desacreditou na gravidade da COVID 19, e não assumiu a liderança indispensável para cuidar da população. Isto levou os Governos Estaduais na direção da assistência aos doentes, investindo largamente na implantação de UTIs. Sem testagem para diagnóstico e isolamento dos portadores do vírus, sem vacina suficiente para todos, e na ausência da indispensável orientação epidemiológica, o Brasil viu crescer, de modo insuportável, o número de mortes.


Do Consultório de Rua ao Consultório na Rua: Uma travessia de corpo e alma.


A experiência do Consultório de Rua, inaugurada no CETAD/UFBA em 1999, deu lugar, bem mais tarde, ao Consultório na Rua, inserido na Atenção Básica (Atenção Primária). O cuidado das pessoas em situação de rua seria, agora, através do SUS, tendo como 'ponte' com as ruas estes Consultórios. Contudo, ir para as ruas exigia dos profissionais adequada preparação para a circulação nos espaços urbanos, distintos dos serviços de saúde, protegidos e, mais ainda, o preparo para lidar com os sofrimentos sociais e psíquicos próprios do Campo da Saúde Mental, aproximando corpo e alma, inaugurando, assim, novas dimensões de trabalho.


O 'Ponto de Cidadania': um lugar para onde ir.


O fechamento do Ponto de Encontro, no Centro Histórico de Salvador, deixou 'resíduos' em nossas memórias. Era necessário reinventar o trabalho nas ruas. Assim, em 2014, por iniciativa de Patrícia Flach, inauguramos em duas regiões de Salvador, os Pontos de Cidadania, onde as pessoas poderiam tomar banho, usar o sanitário, conversar com algum profissional e experimentar 'um encontro esperançoso, tornando-se visível'. Esta atividade foi interrompida dois anos depois. Contudo, neste ano de 2021, os Pontos de Cidadania estão sendo retomados dentro do Projeto Girassóis de Rua, da Secretaria Municipal da Saúde, em parceria com os Consultórios na Rua e uma Casa de Acolhimento para Adultos.

O 'Ponto de Encontro': Um sucesso técnico e um fracasso político.


Em 2012, apoiados pela Presidente das Voluntárias Sociais da Bahia, inauguramos no Centro Histórico de Salvador, uma experiência voltada para o cuidado de pessoas vulneradas, vivendo nas ruas . Esta atividade teve como inspiração as 'boutiques' existentes em Paris: espaços abertos à noite, em alguns bairros, onde, geralmente, dois profissionais acolhiam todas e todos para um café, uma conversa, oferta de seringas, preservativos e, sobretudo, um afetuoso encontro. Em Salvador, abrimos no Santo Antonio Além do Carmo, uma casa pintada de rosa para acolher os que não tinham para onde ir. Durante pouco mais de um ano este espaço de portas abertas esteve em pleno funcionamento. Contudo, por pressão da comunidade, tivemos de nos afastar levando a certeza de que havíamos alcançado grande sucesso técnico e experimentado não menor fracasso político.


Com álcool e direção não se brinca.


Durante 10 anos, levei meus alunos(as) do curso de psicologia da Faculdade Ruy Barbosa, para os postos de combustíveis em Salvador. O propósito era mostrar, na prática, o consumo de bebidas alcoólicas por condutores de veículos, além do desenvolvimento de um programa informativo/preventivo junto a esta população, durante o abastecimento dos veículos. Infelizmente, apesar dos conhecimentos obtidos e das repercussões na cidade, esta intervenção nunca alcançou o Poder Público e foi interrompida.


Quebra de patentes: uma decisão pela vida.


O colega Carlos Parada, psiquiatra, vivendo em Paris há muito tempo, publicou neste fevereiro de 2021, um artigo no Le Monde no qual propõe que as vacinas imunizadoras para o Novocoronavírus, pandêmico, deveriam ter suas patentes quebradas, posto que se trata "do bem comum"- neste caso da humanidade - que se sobrepõe a todos os interesses políticos e econômicos. Trata-se de proteger a vida humana no planeta. A quebra de patentes já ocorreu com relação aos retrovirais para o tratamento da SIDA/AIDS, o que salvou a vida de milhões de homens e mulheres.


Seu filho(a) é um(a) jacaré ou lagartixa?


Inúmeras vezes recebi em meu trabalho pais (pai e mãe), com grandes pacotes supostamente de maconha, encontrada na mochila, ou em alguma gaveta do quarto. Sempre achei um problema esta invasão na privacidade dos filhos ou das filhas. Aliás, qualquer invasão na privacidade do outro(a) é inadmissível. Assim, desenvolvi uma estratégia clínica de classificar os filhos(as) em 'jacarés ou lagartixas e, deste modo, mostrar aos pais os riscos de tratarem seus filhos de modo inadequado: agir sobre uma lagartixa como se fosse um jacaré é tão danoso quanto agir sobre um jacaré, como se fosse uma lagartixa. O cuidado deve levar em consideração, sempre, as circunstâncias e necessidades individuais.


De volta ao passado: o indispensável trabalho nas escolas.


Durante muito tempo nos anos 90, nós do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas - CETAD/UFBA, trabalhamos com as escolas. Tínhamos claro que ali era o lugar privilegiado para a informação sobre psicoativos lícitos, ilícitos e seus usos. Contudo, encontramos uma grande resistência das Diretorias e dos docentes, sob o argumento que "ao falar das drogas ilícitas se despertaria nos alunos a curiosidade e interesse pelo consumo". Foi necessário sensibilizar e convencer o corpo docente e técnico das escolas, quanto à indispensável e adequada informação. Anos depois, diante da ausência de uma Política Pública voltada para a prevenção do consumo de drogas nas escolas, fomos desistindo. Hoje, constato a urgente necessidade de voltar àquele trabalho, face às graves e falaciosas informações que circulam na sociedade brasileira, causadoras de danos e sofrimentos.

Do Consultório de Rua ao Consultório na Rua: uma travessia de corpo e alma.


O trabalho nas ruas iniciado na Praça da Piedade no final dos anos 80, deu lugar a uma atividade mais estruturada para o cuidado de pessoas, sobretudo crianças e adolescentes, vivendo nas e das ruas de Salvador. Assim nasceu o 'Consultório de Rua', constituído por uma equipe multidisciplinar. Não se sabia exatamente como seria trabalhar nas ruas, sem as proteções da instituição formal. Pouco a pouco o Consultório de Rua aprendeu a 'cruzar os olhares' e, durante seis anos, desenvolveu uma tecnologia que se expandiu pelo Brasil e deu lugar, bem mais tarde, aos Consultórios na Rua, vinculados à Atenção Primária.


Uso de drogas injetáveis e AIDS - trocar seringas para viver.


No início dos anos noventa, nossa atenção voltou-se para o cuidado das pessoas usuárias de drogas injetáveis, sobretudo em razão da grande prevalência de contaminação pelo HIV, resultante do compartilhamento de seringas e de relações sexuais desprotegidas. Participamos do Projeto Brasil, patrocinado pelo Ministério da Saúde, e implantamos, em decorrência, os 'Pontos Móveis', para trabalhar nos locais de maior concentração de usuários(as), reinaugurando, em seguida, o Projeto 'Troca de Seringas', interrompido em Santos (SP), no final dos anos oitenta pelo Governo Federal, sob o argumento, míope, que "trocar seringas contrariava a Lei 6.368/76, estimulando o consumo de drogas". Esta atividade sustentada pelo CETAD/UFBA, deu lugar ao Programa de Redução de Danos (PRD-CETAD), mais adiante tornado Política Pública.


A Vida na Marginalidade ou a Morte na Instituição.


Graças ao convite do Professor François Laplantine, da Faculdade de Sociologia e Ciências Sociais da Universidade Lumière Lyon 2, vivi entre 1991 e 1993 em Lyon, na França, onde pude escrever e defender minha Tese de Doutorado. Neste trabalho retomei as experiências desenvolvidas desde a Praça da Piedade, em Salvador (Banco de Rua), passando por outras regiões da Cidade, conhecendo a vida e as vicissitudes de meninos e meninas de e nas ruas. Por outro lado, busquei avaliar as atividades públicas ditas assistenciais e, reconhecidamente, incapazes de produzir cuidados restauradores e emancipatórios. Os serviços públicos voltados para esta população 'deformava' muito mais do que cuidava. Daí o título de meu trabalho: A vida na marginalidade ou a morte na instituição.

Banco de Rua: uma experiência transformadora.


No final dos anos oitenta, inauguramos uma atividade fundamental para o cuidado de meninos e meninas vivendo das e nas ruas de Salvador. Precisávamos conhecer aquelas crianças que não iam até os serviços de saúde, porque não sabiam de sua existência, não dispunham de recursos financeiros, temiam aqueles serviços ou eram, radicalmente, rejeitados por por eles. Aqueles meninos e meninas não eram todos(as) iguais: alguns viviam permanentemente nas ruas, enquanto outros, estavam de passagem. Contudo, nenhum deles(as) havia escolhido viver na rua. Ali, era o lugar da sobrevivência. Era urgente e indispensável conhecer suas histórias e criar dispositivos adequados para cuidar deles e delas, proteger suas vidas.



'Cada macaco no seu galho': cada povo as suas drogas!


As substâncias Psicoativas (SPAs) existem, de modo disseminado, pelo mundo.Contudo, as diferentes regiões e os seus povos têm 'tonalidades' que podemos chamar culturais, isto é, costumes, histórias e línguas. Tudo isso ganha importância "na escolha" que fazem dos produtos psicoativos. Há povos que elegem, por suas características sócioculturais produtos psicoativos depressores ou sedativos como ocorre na maioria dos países europeus, enquanto outros, como o Brasil , estão mais afeitos aos estimulantes e aos desinibidores do comportamento.


"Gracias a la Vida" ( apesar do Coronavirus).


Neste final de ano, quero agradecer a cada um e a cada uma pela atenção que deram aos meus vídeos. Às vezes, repetidamente, contei pedaços de minha trajetória médica e de meu trabalho docente na Faculdade de Medicina da UFBA. Neste ano de 2020, marcado pela Pandemia do Coronanavírus, tivemos nossas rotinas transtornadas. Mais uma vez os humanos foram postos diante de sua fragilidade e finitude, evidenciando a importância, fundamental, do cuidado com a Vida.

Drogas Psicoativas: cada uma em seu quadrado!


As Substâncias Psicoativas - SPAs (drogas), são importantes e devem ter os seus efeitos conhecidos em detalhe, por todos os profissionais da saúde e, de algum modo, por outras categorias de trabalhadores envolvidos no cuidado do sofrimento humano - físico, psíquico e social - além dos educadores(as), e das famílias. As SPAs dividem-se, de acordo com seus efeitos farmacológicos sobre o Sistema Nervoso Central (SNC), em três grupos ou categorias: as substâncias estimulantes, as depressoras e as desorganizadoras. Interessante, também, é compreender que em um mesmo grupo, as substâncias apresentam diferentes potencialidades na produção de dependência (doença), ou morte por intoxicação aguda. Isto significa que as SPAs podem ser simples em sua composição química, mas, complexas, quando interagem com o organismo humano.

Por que os humanos usam drogas ?


Em minhas aulas e encontros técnicos, perguntava aos alunos e colegas: 'por que os humanos usam drogas?' eram muitas, e corretas, as respostas: para ser feliz; por curiosidade; para alcançar a transcendência; para fugir dos problemas; para aliviar a dor; para ter coragem, e tantas outras possibilidades. Minha resposta era um tanto desconcertante: 'usam drogas, porque são humanos'. Inspirado na concepção darwiniana da Horda Primitiva (Horda Primeva), retomada por Freud em seu texto excepcional, Totem e Tabu, passei a considerar que a hominização implicou num monstruoso sofrimento cujo alívio foi alcançado pelo consumo de algum produto psicoativo. Portanto, o uso de drogas se deve à própria natureza e condição de ser humano, isto é, ter se tornado capaz de simbolizar, desenvolver a linguagem, perceber as dimensões do tempo e se reconhecer finito.

As drogas usam as pessoas, ou as pessoas usam as drogas?


Em 1971, o Professor Claude Olievenstein, na França, a partir de seus estudos médico-psiquiátricos sobre o LSD, e da observação de usuários e usuárias, se convenceu que os produtos psicoativos não eram o mais importantes nas toxicomanias, mas, as pessoa e suas histórias. Disto resultou a proposição que mudou o modo de cuidar dos consumidores de drogas, particularmente as ilegais: 'a toxicomania é o resultado do encontro de uma pessoa com um produto químico [psicoativo], num dado momento social [sócio-cultural]'.

Droga, é a falta de informação.


Nos anos oitenta os adolescentes foram muito estigmatizados em razão do uso de maconha. Não se compreendia bem a utilização deste produto pelos jovens em razão dos sofrimentos decorrentes da 'travessia' entre a infância e a vida adulta. Muitos adolescentes foram submetidos a tratamentos médicos e outros, sem que se levasse em conta os danos físicos e, particularmente emocionais, dessas intervenções, geralmente maiores do que os danos causados pelo uso, na maioria das vezes transitório e circunstancial. Durante muito tempo, boa parte de nosso trabalho consistiu em informar e orientar as famílias, diante do consumo de maconha por seus filhos. A droga maior, era a falta de informação.


Os primeiros estudos epidemiológicos; um novo horizonte.


Nos tempos iniciais, entre 1985 e 1990, foi necessário 'desmontar' os enormes preconceitos relacionados com a Canabis sativa - Maconha. Isto foi possível graças aos estudos epidemiológicos iniciados em 1987 na Bahia, Brasília, Rio de Janeiro e, sobretudo em São Paulo, pelo CEBRID. Estes estudos evidenciaram que as substâncias psicoativas mais consumidas não eram as ilícitas, mas, o álcool, seguido do tabaco, medicamentos e inalantes, cujos números se distanciavam muito da droga ilícitas mais consumida - a maconha - e, ainda mais da cocaína. Estes dados foram fundamentais para o desenvolvimento das inúmeras atividades informativas junto aos mais diversos níveis sociais por todo o Brasil.

Maconha, maconha, por que te perseguem?


O Centro inaugurado em 1985, possibilitou o cuidado dos usuários, orientado pelo reconhecimento da maior importância dos humanos nos encontros com drogas. Isto permitiu compreender, rapidamente, que a maconha - droga mais temida pelas famílias, tida como "porta de entrada" para as drogas ditas "mais pesadas" - cumpria relevante papel nos ritos ordálicos, ou de prova, dos jovens adolescentes. O horror atribuído à maconha, apoiava-se na falsa ideia que este produto "funcionaria como uma barreira para o avanço social dos filhos e filhas, pobres ou de classe média.Perseguia-se a maconha como se fosse um monstro a ser abatido. Em verdade, o que se perseguia - e abatia - era a genta preta e pobre, os pequenos traficantes . As brutais repressões, justificadas pela representação social da maconha, eram, de fato, mais danosas do que os efeitos físicos ou psíquicos causados pelo uso. Tudo isto foi sendo posto em evidência pelo Centro da Caixa d'Água.


'Despsiquiatrizar', era preciso.


Até a primeira metade dos anos oitenta, as pessoas usuárias de álcool e, sobretudo, de outras drogas psicoativas, eram em geral encaminhadas para os hospitais psiquiátricos. Meu entendimento ia noutra direção: era necessário cuidar das pessoas sem estigmatizações e em liberdade. Encontrei nos Centros Sociais Urbanos,
equipamento do Governo Estadual, essa possibilidade. Em 26 de julho de 1985 foi inaugurado no CSU da Caixa d'Água, um ambulatório especializado (Centro de Terapia e Prevenção do Abuso de Drogas), orientado pelos ensinamentos do Centro Médico Marmottan, de Paris.

 

Pessoa, droga e cultura - um tempo para refletir.


O encontro e trabalho com o Prof. Claude Olievenstein, de Paris, foi fundamental para a criação em 1985, na Faculdade de Medicina da Bahia (UFBA), de um Serviço que levasse em consideração os humanos, as drogas psicoativas e as condições sócio-culturais. Impunha-se considerar, prioritariamente, as pessoas e os sentidos do consumo de uma ou mais drogas, dados pelas histórias pessoais, inseridas no social e marcadas pelas imposições da cultura. Se o encontro com um produto psicoativo podia ocorrer ao acaso, as significações que poderiam ganhar estariam, sempre, submetidas aos humanos em suas travessias pela vida.


O que é a toxicomania?


Os ensinamentos do Dr. Claude Olievenstein se apoiavam no reconhecimento da toxicomania como 'resultante do encontro de uma pessoa com um produto (droga), num determinado contexto sócio-cultural'. Para ele, cuidar de um 'toxicômano', era uma questão de liberdade, da liberdade perdida, reconhecendo que o uso de um ou mais produtos psicoativos tinham, quase sempre, um sentido na história de cada pessoa, na busca de alternativa para o sofrimento, para as dores insuportáveis da vida. Em Salvador, entre 1983 e 1985, busquei inaugurar no contexto do ensino da Psiquiatria Forense, na Faculdade de Medicina, 'um espaço' que pudesse acolher as pessoas usuárias de substâncias psicoativas ilícitas, sem preconceitos e longe das costumeiras estigmatizações.



"Os drogados não são felizes".


A leitura do livro do Dr. Claude Olievenstein - Os drogados não são felizes - provocou em mim a necessidade de conhecer o Centre Medical Marmottan, em Paris, criado por ele em 1971, para o cuidado de usuários e usuárias de drogas, tendo por princípio fundamental a liberdade, reconhecendo, portanto, a primazia da pessoa e seu contexto sócio-cultural, diferentemente do que ocorria no Brasil, onde "a droga", particularmente a maconha, assustava a sociedade e era tida como causa de todos, ou quase todos, os problemas, devendo ser combatida a qualquer preço.


Mais um início: a Faculdade de Medicina da UFBA.


As experiências vividas no Manicômio Judiciário da Bahia, me levaram - a convite da Professora Maria Theresa Pacheco - para a Faculdade de Medicina da Bahia, onde pude apresentar aos alunos, questões relacionadas com o esquecimento social a que estavam relegados os "mortos vivos", abandonados na Instituição. Uma questão que nos atravessava constantemente, dizia respeito à responsabilidade dos profissionais diante 'das perdas de vida' daquelas pessoas. Provocado por tudo isso, decidi retornar à França, em 1983, para conhecer um renomado serviço voltado para o cuidado de "pessoas toxicômanas".



"De volta ao futuro"


Depois de ter vivido na França entre 1973 e 1977, retornei a Salvador e fui trabalhar, novamente, no Manicômio Judiciário da Bahia. Nesse novo período, além de minha indignação pelo modo como aqueles homens e mulheres viviam, fui tomado pelas 'iatrogenias farmacológicas', isto é, os efeitos colaterais produzidos pelos longos e intensos tratamentos químicos (psicofármacos), verdadeiras camisas de força que, longe de qualquer sentido terapêutico os(as) aprisionavam e os(as mantinham 'domesticados(as)', sem futuro, que não fosse o silêncio.



"Allons enfants de la patrie"


Em 1973, fui contemplado com bolsa de estudos do Governo Francês, para estudar psiquiatria e eletrencefalografia no Centre Hospitalier Sainte Anne. Lá permaneci durante quase cinco anos. Escreví uma monografia e, sobretudo, aprendi a língua francesa. De retorno a Salvador, fui trabalhar, novamente, no Manicômio Judiciário, reativando velhas dores e abrindo caminho para o cuidado com usuários e usuárias de drogas.

Documentário citado - A Casa dos Mortos -




Um lugar para morrer: o Manicômio Judiciário.


Os Manicômios Judiciários já deveriam ter desaparecido. Exemplo de instituição totalitária, marcada pela tristeza, morte psíquica e morte social (não raro morte física), serve ao Judiciário, por força do Código Penal e suas determinações em torno da Responsabilidade Penal. Também neste hospício, em razão da Lei de Tóxicos do Brasil, são internadas pessoas para perícia psiquiátrica, tendo em vista concluir se o consumo de drogas - dependência química - lhes retirou a capacidade de compreender os atos eventualmente praticados, ou, se se trata de um delinquente - traficante - sujeito às penas da Lei. Nasceu daí, meu interesse pelos humanos e seu consumo de psicoativos.


A psiquiatria abre suas asas sobre mim.


O término do curso médico, abriu-me a possibilidade de trabalho no Manicômio Judiciário da Bahia, indicado pelo Professor Álvaro Rubim de Pinho. Lá, naquele hospício, encontrei homens e mulheres envolvidos pelo mais doloroso manto de sofrimento, destituídos de tudo - exceto do abandono e da morte social. Ainda no Manicômio Judiciário, nasceu meu interesse pelos humanos e o consumo de psicoativos.


De um 'Clube de Ciências' ao encontro com a Liberdade.


O encontro com o Professor Aníbal Silvany Filho, foi fundamental para muitos acadêmicos de medicina - e médicos. O 'Clube de Ciências' que manteve no período 1966-1967, reunia jovens de várias escolas e animava-os para o estudo e a pesquisa. Nós, seus alunos de medicina, o acompanhavamos nos sábados à tarde no Hospital Aristides Maltez. Mais tarde, nos foi possível idealizar o Iº Encontro Científico de Estudantes de Medicina - Iº ECEM, realizado em 1969, ultrapassando as dificuldades impostas pelo Golpe Militar de 1964. Acadêmicos e acadêmicas de medicina de diversas regiões do Brasil, discutiram, com alegria, os problemas e limitações de seus cursos e, sobretudo, sonharam o futuro que poderiam construir.


Histórias em cinco minutos: Tudo tem mais de um começo!


Começo, agora, uma nova série de vídeos, na qual tratarei da relação entre aspectos de minha vida pessoal, e os desdobramentos para meu trabalho, particularmente no cuidado às pessoas consumidoras de psicoativos ilícitos (drogas). Um começo possível, parte de minha passagem pelo Colégio Central da Bahia, pelos cursos pré-vestibulares, no difícil período do Golpe Militar de 1964, e o vestibular em 1965, na Universidade Federal da Bahia. Na Faculdade de Medicina, encontrei pessoas fundamentais para minha formação e futuro profissional.



Uma dedicatória, quase despedida.


Por ocasião de minha aposentadoria da Faculdade de Medicina - Universidade Federal da Bahia e, consequente afastamento da condução do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas - CETAD, recebí de Alba Riva, psicóloga e psicanalista, colega de trabalho e construções, o livro de Manoel de Barros 'Sobre o Nada'. Em sua dedicatória, concluiu: "...nesta sua despedida como Coordenador Geral, agradeço pelo incentivo, que se conjuga com o ânimo de fazer as coisas com sabor".


Coronavírus: o que esta pandemia revela do Brasil?


Muito se tem especulado sobre os efeitos sociais decorrentes da pandemia do Novo Coronavirus, e as modificações comportamentais que se implantarão no futuro. No Brasil, a epidemia revela, agora de modo contundente, a imensa deseducação que caracteriza nossa gente, independente da classe social. Servem como exemplos o descuido com as condutas de higiene, indispensáveis à proteção da saúde e - consequentemente - da vida, o desrespeito às leis de trânsito, ou a desconsideração das filas, ou mesmo, lavar as mãos depois de usar o sanitário. Nós brasileiros e brasileiras não somos ruins nem descuidados. Somos carentes de educação.


Bioética e psicoativos: uma aproximação necessária.


Os profissionais da saúde que cuidam das questões relacionadas com o consumo de substâncias psicoativas, em particular as ilícitas, não têm incorporado as reflexões provenientes da Bioética, entendida como campo que trata das 'coisas da vida', numa dimensão ética. O consumo de drogas é um ato essencialmente humano, marcado por diversas circunstâncias, centrais para a Bioética, a exemplo da liberdade, autonomia e vulnerabilidade. Neste sentido, propõe colocar a(s) droga(s) entre parênteses, para ter acesso à alma humana.

Frantz Fanon: Pele negra, máscaras brancas.


Frantz Fanon publicou seu livro 'Pele negra, máscaras brancas em 1952. Médico, culto, sensível e ativista, exerceu com este e outros trabalhos, uma relevante influência sobre pensadores do 'Terceiro Mundo'. Desnudou, de modo incansável, a relação entre negros e brancos, relação marcada pelo racismo e seu horror. No Brasil, os 'diversos racismos' permanecem, em geral, não ditos, manifestando-se de modos e níveis diversos, carecendo de reconhecimento e enfrentamento. O estudo da obra de Fanon se impõe, mais do que nunca, entre nós.


Por uma clínica peripatética e plástica.

Antonio Lancetti, de saudosa memória, faz alguns anos, reconheceu nas atividades de saúde na rua, uma 'Clínica Peripatética', assemelhada ao ensino de Aristóteles, "andante", uma clínica-cuidado, desenvolvida nos espaços públicos com a 'gente de rua'. Mais recentemente, Lancetti nos falou da fissura, contra-fissura, e da plasticidade psíquica. A fissura, não seria "a vontade incontrolável de usar drogas", mas o olhar devorador do Poder Público sobre os usuários(as), e a contra-fissura, a resistência destas pessoas à medicalização e às internações involuntárias. Reservou a 'plasticidade psíquica, para os(as) profissionais da saúde, incansáveis na invenção e reinvenção de seus trabalhos, diante da carência de Políticas Públicas voltadas para os(as) vulnerados(as), e não para os produtos ou "para a gente de bem".

Loucos de rua; Uma gente vista, mas abandonada.


Durante longo tempo, as pessoas apresentando transtorno ou perturbação da vida psíquica, eram chamadas de doentes mentais. Atualmente, propõe-se chamá-las de 'portadoras de transtorno mental'. A mudança de nome, não implicou no reconhecimento de suas inúmeras competências. Continuam, em geral, sendo vistas como incômodas e perturbadoras. O que dizer, então, dos homens e mulheres portadores(as) de transtornos mentais, em situação de rua, completamente abandonados(as) às mais diversas dores das ruas? Caminham, carregando suas loucuras pela cidade. É inadiável um olhar mais cuidadoso, talvez, de um Consultório de Rua, específico para esta gente, vista, mas esquecida e abandonada.

Uma questão recorrente e preocupante para profissionais e famílias, é o retorno ao uso de uma ou mais drogas, depois de uma interrupção. A literatura tem chamado esta condição de 'recaída', com o sentido de fracasso da permanência na abstinência. Há mesmo inúmeras propostas visando a prevenção destas recaídas. A Professora Rossana Rameh Albuquerque, de Pernambuco, propõe substituir o termo recaída, por recursividade, compreendendo que o retorno ao consumo não é igual a 'começar de novo', mas, viver uma experiência possível, inserida numa história que não se fragmenta.
Os uruguaios organizaram em junho deste ano, um Seminário Internacional (Las ciudades ante el problema mundial de las drogas), com o objetivo de discutir a questão das drogas ilegais e suas possíveis relações com o espaço urbano, isto é, de que modo os bairros influenciam o micro-tráfico e o consumo, e vice-versa.Minha participação consistiu em considerar as pessoas e suas relações com determinadas regiões da cidade de Salvador (Bahia), a partir das circunstâncias sociais que as envolvem, reconhecendo o uso de drogas legais e ilegais - e o micro-tráfico - uma estratégia para viver, e não para morrer.

Dia Internacional de Combate às Drogas: "Tô fora".


Ao longo do tempo, as drogas, entenda-se, as ilegais, foram ocupando largo espaço no imaginário social, a ponto de dar lugar à chamada 'guerra às drogas' e, mais recentemente, ter um dia internacional para lembrar este combate. Não participo desta proposta porque este combate não me interessa. Me interessaria se fosse um 'Dia Internacional de Cuidado e Proteção das Pessoas Usuárias Abusivas de Drogas'.


"Só se elabora na depressão".


Há muito, ouví de um estimado Mestre esta enigmática frase: "só se elabora na depressão". Levei tempo para compreender que nós, os humanos, nos 'movemos' e nos transformamos na falta. A plenitude imobiliza. Compreendi que o medo, a angústia, a dor das perdas, e muito mais, podem provocar mudanças. Neste momento em que o mundo enfrenta uma difícil pandemia, os humanos, temerosos, se movem, não sei se para melhor ou para pior, mas, "E pur si muove".

"O coração, a palavra e o pensamento" de uma Defensora Pública.


Cinco crianças, meninos e meninas, irmãos, abusadas pelo próprio pai, foram levadas para um abrigo. Transformadas em processo, chegaram aos olhos de uma Defensora Pública da Bahia. Alcançada pela dor daquelas crianças, e, diante do horror das narrativas, confessou não saber que caminho e decisões tomar. Pensava, sobretudo, no abandono que pairava sobre aquelas jovens criaturas. Ouvindo isto, sugeri que as crianças não estavam mais sozinhas: haviam alcançado sua alma. E isto é tudo.
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Um céu de muitas estrelas.


Houve um tempo em que as ruas de Salvador mostravam muitos meninos e meninas - e adultos muito jovens - lavando parabrisas dos veículos, cheirando cola ou rogando por algum dinheiro, vivendo a difícil vida das ruas. Certa vez, um deles, com quem conversávamos, referindo-se ao lugar onde dormia, sentenciou: "aqui é um hotel de muitas estrelas", referindo-se às estrelas do céu. Atualmente, vale perguntar, para onde foram, onde estão os filhos e filhas das ruas, neste momento difícil, pandêmico,? Os que não têm para onde ir, como estarão (sobre)vivendo? Tomara que estejam sendo acolhidos, com a atenção e cuidado que merecem todos os humanos.
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Rubem Alves e o milho pra pipoca.


Rubem Alves, em uma bela crônica, trata da transformação do milho em pipoca, graças à ação do fogo. Entretanto, alguns caroços não se transformam, ficam duros, imprestáveis, vão para o lixo. São os piruás. Compara ele, o milho aos humanos que, sob as dores e sofrimentos os mais diversos, também se transformam. Contudo, há humanos submetidos às mais rigorosas dificuldades, que não se transformam. Não são piruás por escolha, são humanos que não tiveram, em sua maioria, apesar do 'fogo', possibilidade de se moverem na geografia das oportunidades sociais.

Agostinha e os pés dos que não têm chão.


Agostinha é uma enfermeira, que, levada não sei por quais mistérios, decidiu cuidar dos pés "dos que não têm chão", nas imediações da Praça da Luz, em São Paulo. Retorno a Agostinha nestes tempos de Coronavírus, pensando nos profissionais da saúde diante das exigências do trabalho, da dor, da finitude, tolerantes e solidários, buscando chão para os que necessitam de ar, 'sem tempo pra temer a morte'.
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"O maior vendedor do mundo".


Diferentemente do que pode fazer pensar o título, este livro de Og Mandino não é uma destas promessas mágicas para o sucesso. Relata a história de um rico comerciante, no antigo Oriente Médio, que, no final da vida, decide vender todos os seus bens e distribuir sua fortuna entre seus empregados e as pessoas pobres de sua cidade, enquanto espera o aparecimento de alguém, especial, a quem deve oferecer dez pergaminhos - seus bens mais preciosos - chave do seu sucesso.
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BOA PROSA!!!
 
 


 
 

 

 
 

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