sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Do incômodo ao encontro: a experiência de Redução de Danos na Feira Noturna.

 


Ana Paula Briguet [1]

Caty C. Fernandes Teodoro[2]

 

A Feira livre noturna acontece no Centro da cidade de Barueri- SP, semanalmente às terças-feiras. É um espaço de alimentação, cheio de som, movimentado e colorido. Estende-se ao evento, os arredores que incluem a praça dos estudantes e o estacionamento do ginásio municipal.  Nessas áreas acontecem atividades de cultura e esporte tais como: a realização da Batalha de Rima da Aldeia, o basquete de três, skate e manobras com bicicletas.

Em maio de 2017 o Ministério Público do Estado de São Paulo através do Promotor de Justiça da Vara da Infância e Juventude, convoca uma reunião ampliada integrantes da Rede intersetorial para discussão da utilização desse espaço público pelos jovens e da preocupação como as cenas de uso de álcool e outras drogas.

Assim, iniciamos com essa demanda que a princípio não nos soou como de cuidado, mas de “resolução” do incômodo causado pelo encontro e convivência de jovens na Batalha de Rima e o uso de drogas. Mas, afinal, não temos que nos incomodar?

A contextualização da feira noturna fará todo sentido para entendermos como nós, trabalhadores da saúde, junto com os jovens, frequentadores e trabalhadores da feira, fomos constituindo ações de Redução de Danos que tinham como objetivo a promoção do autocuidado e compartilhar o máximo de informações possíveis sobre o uso de drogas.

 Assim, criamos um grupo de trabalho, representado pelas equipes do CAPS III Álcool e outras Drogas, CAPS II Infanto Juvenil, Consultório na Rua e profissionais da Unidade Básica referência daquele território e iniciamos com articulação da rede intersetorial, mapeamento e territorialização do espaço da feira.

Encararmos a feira não apenas como um espaço físico, mas como um território, singularizado, produto e produtor de singularidades, isto é onde a subjetivação acontece.

Para realização do mapeamento estiveram presentes os profissionais da equipe do Consultório na Rua, do Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas (CAPS-ad/CRAD) e o Centro de Atenção Psicossocial Infantil Infanto Juvenil (CAPSij). Foram realizadas visitas à Feira Noturna e seu entorno durante as três primeiras semanas do mês de julho/2017, no período das 17h00 às 21h00 e após 01 ano realizamos novo mapeamento em julho de 2018.

 O objetivo das ações in loco era a observação do espaço, das pessoas que a frequentam incluindo os jovens e trabalhadores da feira, bem como o percurso por elas realizado, utilizamos como metodologia a observação direta e um roteiro norteador semi-estruturado para melhor compreensão e análise dos dados obtidos. Para composição deste mapeamento, também foram realizadas reuniões semanais do Grupo de Trabalho para discussão das observações, percepções e elaboração de estratégias. Com os dados obtidos, fora composto um diagnóstico situacional e, posteriormente, a construção de ações a fim de realizarmos o cuidado de Promoção e Prevenção à saúde dos adolescentes e jovens.

Sobre o olhar da equipe

A Feira Noturna é um espaço de suma importância para população, valorizada por todas as faixas etárias. Pareceu se configurar para além de um local de aquisição de produtos, mas também como espaço de encontro e socialização e que se tornou um ponto de referência para as pessoas em Barueri e região. Especialmente sobre os adolescentes, notamos que eles se utilizam da feira para se alimentar e depois se dirigem para a Praça dos Estudantes ou local onde ocorre a Batalha de Rima- Batalha da Aldeia.

Os grupos se encontram a partir das 20h00 e notamos o uso de bebida alcoólica, narguile e, em menor quantidade, maconha. Os jovens se organizam em casais, pequenos grupos (de três a cinco pessoas) e pouquíssimos grupos maiores (com mais de cinco pessoas). Há a presença de ciclistas e skatistas percorrendo o espaço da praça, nas ruas e fazendo manobras. Também entramos em contato com o Pronto Socorro Central para identificarmos se havia diferença quanto a população que era atendida na terça-feira, bem como as queixas iniciais. A equipe não identificou diferença no fluxo de atendimento dos munícipes neste dia, tão pouco o aumento do número de jovens para uso das dependências do Pronto Socorro.

Nesse sentido, curiosamente o uso de drogas não apareceu como incômodo para os feirantes, nem para as pessoas que circulavam na feira e tão pouco pela Guarda Municipal. Em nossas “abordagens” ficava evidente o interesse das pessoas pelo local como espaço de múltiplos encontros e lazer no período noturno.

As abordagens citadas em aspas representam a nossa desconstrução nos encontros com os jovens, que associavam a abordagem ao campo repressor e policialesco e não ao encontro e ao cuidado que propomos.  

Decidimos então, que adotaríamos uma estratégia ética de nos aproximar dos jovens e não mais abordá-los.  Em duplas ou em trios, os profissionais foram se aproximando e propondo conversas a respeito da vida, afetos, angústias e autocuidado, relações familiares e sobre o uso de drogas na perspectiva da redução de riscos e danos. Os encontros eram finalizados com o desejo de nos encontrarmos novamente deixando uma porta aberta nos serviços CAPS, UBS ou na própria feira. 

Desconstruímos e construímos muitas ações. Experimentamos oficinas culturais e temáticas, constituição de equipes ampliadas intersetoriais, parcerias com Serviço de Atenção Especializado- SAE nas campanhas de teste rápido, Setembro Amarelo e ações comunitárias com os organizadores Batalha de Rima.

Nesse processo passamos a identificar a necessidade de garantia de uma permanência e o reconhecimento por parte dos frequentadores da nossa presença e do nosso vínculo com o território. Adotamos uma nova estratégia, um espaço físico fixo, uma tenda. Um lugar onde teríamos um espaço acolhedor para quem quisesse estar e nos encontrar ou para quem tivesse interesse em conhecer a nossa equipe e o nosso trabalho. Espalhamos cadeiras de praia e almofadas no chão, mesinha com água, chocolate, balas de hortelã, preservativos, insumos, folders dos serviços e cartazes nas laterais e na frente da tenda com frases que pudessem despertar olhares e aproximações. Além disso, ampliamos os encontros que passaram de mensais para quinzenais.

  Esse é um projeto que nos traz muitas inquietações e desafios, nos questionamos muitas vezes a respeito de nossa atuação na cena de uso dos jovens em espaço aberto de lazer. Não ocupamos o lugar de resolução do incômodo, mas sim, de respeito a cultura do jovem, trazendo, nos diferentes tipos de aproximação, a vida, a garantia dos direitos dos jovens de pertencer, de ter acesso aos serviços de saúde e a ampliação do repertório de atividades de cultura, lazer e arte.

Que possamos estar sempre abertos aos encontros como nos diz Blanchot (2001, p. 63) que encontrar é: “[...] tornear, dar a volta, rodear. Encontrar um canto é tornear o movimento melódico, fazê-lo girar. ” É poder aproximar de suas inúmeras formas de combinações, girar em torno de seus múltiplos movimentos e circular por suas variações e arranjos.



[1] Terapeuta Ocupacional, trabalhadora nos dispositivos: CAPS II, CAPS III, NASF e na Gestão de serviços de Saúde Mental. Membro intercambiante SP. Mestrado em Psicologia Clínica pela PUC/SP(2008), especialista em Saúde Mental pela UNIFESP(2008), especialista em Saúde da Família pela UNIFESP( 2016), especialista em gestão do SUS FIOCRUZ ( 2013).

[2] Caty Cilene Fernandes Teodoro, terapeuta Ocupacional, trabalhadora do SUS desde 2007, atualmente atua na equipe do Consultório na Rua de Barueri. Especialista em
Saúde Mental pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo- USP
Paulo- UNIFESP (2016),especialista em Micropolítica da Gestão (2011), especialista em Saúde da Família pela Universidade Federal de Sãoe Trabalho em Saúde (2018) pela Universidade Federal Fluminense.

Referências

BLANCHOT, maurice. A conversa infinita: A palavra plural.trad.Aurelio Guerra Neto. São Paulo: Escuta 2001.

Programa Atitude: uma outra possibilidade de cuidado

                                                                                                                            Malu Freire [1] ...