Maria Angélica Comis[1]
Durante a minha adolescência, convivi
com muitos amigos e amigas que também estavam em seus períodos de
experimentações. No entanto, eu sou a caçula de uma família com idade avançada
e bastante conservadora, portanto, tive uma educação baseada em estigmas e
medo. Nesse contexto percebi que, mesmo no período de experimentações de
substâncias, momento de muitos excessos para alguns adolescentes, eu me
mantinha um pouco mais cuidadosa quando fazia uso de algumas substâncias
psicoativas, ou seja, já reduzia os danos de saúde e sociais sem ter ideia de
que já estava me iniciando no mundo da redução de riscos e danos.
Com o passar dos anos, passei a
estudar a temática de álcool e outras drogas na graduação de psicologia por
conta própria, pois, no início dos anos 2000, não era tão comum falar de
substâncias psicoativas e redução de danos no curso de psicologia.
Após minha graduação, tive a
oportunidade de trabalhar em um programa municipal de assistência social a
famílias (PROASF) em algumas comunidades da zona sul da cidade de São Paulo;
essa atuação me aproximou fortemente da discussão sobre vulnerabilidade e
desigualdade social, gênero e racismo.
Em seguida, a minha experiência foi
com crianças e adolescentes em contexto de abrigamento fazendo parte da equipe
de reestruturação de uma instituição sob intervenção judicial que abrigava 250
crianças e adolescentes no município de Carapicuíba. Foi surpreendente para uma
jovem psicóloga que tinha como objetivo mudar o mundo! Nesse sentido, a
vivência constante em um contexto em que as violações dos direitos humanos eram
sistemáticas foi possível tentar minimizar os danos em relação às crianças,
adolescentes e suas famílias atendidas por aquele serviço.
Além disso, o estigma imputado pelos
conselheiros tutelares e pelo poder judiciário às famílias em alta
vulnerabilidade social, com sofrimento psíquico e muitas vezes usuárias de
substâncias estavam completamente relacionados aos abrigamentos, inclusive de
crianças abrigadas há 10 anos. Todas estas entidades são representantes do
Estado e este modo de funcionamento é violadora dos direitos à convivência
daquelas famílias.
Esse capítulo da minha trajetória
profissional foi fundamental para a minha entrada no campo das políticas sobre
álcool e outras drogas. Passei a me aprofundar na área de pesquisa qualitativa
e substâncias psicoativas e o primeiro estudo realizado foi sobre a opção de
não uso de Ecstasy (MDMA-metilenodioxidometanfetamina). Esse estudo foi
realizado a partir de observação participante em contextos de festas e
festivais, principalmente de música eletrônica entre os anos de 2008 e 2011.
Nesse período tive um belo encontro com o Centro de Convivência É de Lei
propiciado pela grande Tharcila Chaves – amiga que estudava estratégias de
redução de danos entre pessoas que usavam crack – o É de Lei havia acabado de
ser contemplado em um edital da UNODC e Ministério da Saúde para desenvolver um
projeto de prevenção às IST’s (infecções sexualmente transmissíveis) em
contextos de festas. No ano de 2011, eu finalmente havia encontrado uma
organização que trabalhava com as temáticas que tanto me faziam sentido.
Passei a trabalhar no Centro de
Convivência É de Lei para coordenar um projeto que se tornou, após os Coletivos
Balance e Balanceará, o Projeto ResPire, uma grande referência em contextos de
festas construída ao longo dos anos.
O Centro de
Convivência É de Lei é uma organização da sociedade civil que atua com redução
de danos desde 1998. Acompanhou pessoas que usavam cocaína injetável e sua
mudança da forma de administração injetada para a forma fumada; a equipe fez
troca de seringas, atuou com as profissionais do sexo, com pessoas em situação
de rua, usuárias de substâncias psicoativas, além de fazer a prevenção das
IST’s usando sempre o vínculo e a convivência como as melhores estratégias de
atuação. O prazer de fazer parte do primeiro centro de convivência do Brasil
para pessoas que usam drogas é indescritível, pois a complexidade é enorme, mas
a possibilidade de construir coletivamente o cotidiano destas pessoas é maravilhoso.
Durante os anos de 2011 a 2014 pude
participar de projetos de pesquisa interessantes relacionados ao uso de
substâncias, como por exemplo, a administração de ayahuasca em um contexto
laboratorial, realizando entrevistas semiestruturadas das pessoas voluntárias
do estudo e uma grande imersão no mundo da ibogaína, sendo esta utilizada no
tratamento de pessoas com problemas decorrentes do abuso de substâncias.
Entrevistei cerca de vinte e duas pessoas que estavam abstinentes após se
tratarem com a ibogaína. Essas experiências foram importantes e contribuíram
para identificar os potenciais terapêuticos dessas substâncias e me manter
próxima da área acadêmica.
Após aproximadamente três anos longe
do É de Lei (2014-2017), período em que pude experienciar trabalhar como
Assessora de Políticas Públicas sobre álcool e outras drogas no poder público,
coordenando projetos de direitos humanos para as pessoas que vivem em situação
de rua e usuárias de substâncias psicoativas, além de fazer parte da coordenação
colegiada intersetorial do Programa De Braços Abertos, projeto de garantia de direitos humanos
pautado na redução de danos. Senti que podia voltar para o É de Lei com uma
bagagem ainda maior e poder contribuir para que pudéssemos ampliar nossas
ações, incidir ainda mais nas políticas públicas, garantir a defesa dos
direitos das pessoas que usam drogas e, principalmente, favorecer que as
pessoas mais afetadas pela nefasta guerra às drogas ocupem lugares e possam
exercer o direito da participação social.
Com esse pequeno relato, eu tentei
expressar a respeito da relação entre a redução de danos em minha vida pessoal
e profissional, sempre lembrando que a partir da RD (redução de danos) podemos
lutar por mudanças estruturais que combatam o estigma, a desigualdade social, o
racismo, o machismo e qualquer forma de discriminação de pessoas que fazem uso
de substâncias psicoativas.
[1] Maria Angélica Comis – psicóloga
clínica, redutora de danos, mestre em Psicobiologia, especialista em Medicina
Comportamental e Terapia Cognitiva Comportamental, foi Assessora de Políticas
Públicas sobre álcool e outras drogas da Secretaria Municipal de Direitos
Humanos e Cidadania, professora universitária, coordenou o Projeto ResPire e
atualmente é coordenadora de Advocacy e Comunicação do Centro de Convivência É
de Lei.
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