quinta-feira, 2 de julho de 2020

Para além do desejo de cura: educação libertária para construir novos possíveis

   


Profa. Dra. Luciana Togni de Lima e Silva Surjus[1]

 

Em 2016, recém chegada como professora na Unifesp, vinda de uma trajetória de atuação na gestão de políticas públicas de saúde mental, propus que submetêssemos à finada Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad) um Centro Regional de Referência (CRR) pelo Campus. Vivíamos o constrangimento do governo de Dilma e como sempre, em minhas reações a crises, trabalhava freneticamente para descobrir os caminhos institucionais, enquanto perdia quase que diariamente interlocutores no governo federal, um a um sendo desligado ou desligando-se. Como já me alertava o amigo Leon Garcia, eu vinha de um ritmo da gestão, e teria problemas com os tempos da Universidade. Atravessando hierarquias desconhecidas, levando algumas broncas, mas sendo solidariamente acolhida, acabamos por morrer na praia: da ampliação de 50 CRR proposta pela Senad, creio que não tenha nascido nenhum.

Renomeado como Centro Regional de Formação (CRF) em Políticas sobre drogas e Direitos Humanos, esse espaço se estrutura há 3 anos como programa de extensão universitária, propondo práticas formativas emancipatórias enquanto estratégias de inovação social, gestado e gerido pelo Grupo de Pesquisa e Extensão DiV3rso: Saúde Mental, Redução de Danos e Direitos Humanos, composto por docentes, estudantes de graduação e pós graduação e comunidade do entorno.  As ações desenvolvidas visam a qualificação para diferentes políticas sociais de interface com a temáticas das drogas, envolvendo, principalmente, o compromisso com a transformação da realidade social que envolve as pessoas em uso problemático e em situação de vulnerabilidade, sob a perspectiva dos Direitos Humanos, garantindo formação acadêmica em consonância com a realidade local e os contextos reais de vida. O que se propõe é materializar o sonho de uma educação transformadora, intensificando a porosidade entre universidade e comunidade; entre alunas e docentes; entre trabalhadores e pessoas atendidas nos diferentes serviços dos municípios da Baixada Santista (Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Monguaguá, Peruíbe, Praia Grande, Santos e São Vicente).

Das transformações decorrentes do CRF ressaltamos a integração com as atividades de ensino na graduação, na curricularização da extensão, e a promoção de lugar protagonista das pessoas atravessadas pela criminalização de drogas de usos inscritos nos territórios vulnerados. A abordagem metodológica crítica e inventiva tem promovido modificações nas relações entre a universidade e as pessoas que vivem nas ruas de seu entorno, reconhecida enquanto COMUNIDADE, o que não se dá sem incômodos e resistências.

Tomando o desafio da permanência estudantil, fundamental para a sustentação de uma política de universalização do ensino superior, mote da existência do Campus Baixada Santista, visamos incidir na  diminuição das desigualdades que retiram o universo acadêmico do horizonte de grande parte da população, estabelecendo a captação de recursos como uma das metas dos participantes, no tocante à sustentação dessa experiência, o que vem ocorrendo de modo a dar materialidade à promoção de direitos. Explico: alunas e alunos, e membros da comunidade, com a oportunidade de contar com bolsas de extensão, numa legitimação do esforço afetivo e intelectual no desenvolvimento das ações. A captação de recursos é realizada de forma atenta e planejada por todo o coletivo, e tem sido exitosa junto a mandatos de parlamentares progressistas e iniciativas de apoio institucional à extensão.

Articulado a diferentes coletivos atuantes no campo do ensino e da redução de danos já desenvolvemos formações em parceria com a Fiocruz Brasília, Univesp, Centro de Convivência é de Lei, e recentemente numa inciativa totalmente virtual apoiada pela Abrasme, Reduc, Renfa, MBRD, Aborda, Intercambiantes BR/SP, Movimento Nacional de População em Situação de Rua e Jornal Vozes da Rua.

Publicamos dois ebooks que reúnem discussões acerca da RD, cotejadas com o registro dessas experiências locais[2], e mais recentemente já incluindo capítulos acerca da repercussão dessas ações sobre as histórias, contatas pelas próprias pessoas[3].

O envolvimento formal de pessoas da comunidade com histórias de uso de drogas e em situação de vulnerabilidade, promovem legitimação de sua experiência enquanto saber fundamental para avançar na construção de respostas que atendam às suas reais necessidades. Ampliando o que podem ser oportunidades e habilidades para o trabalho, há mobilidade do que é central na vida, engendrando inclusão por meio de lugares sociais de relevância. A metodologia provocou a lateralidade no processo de construção de conhecimento, apostando nas trocas e na diversidade de atores como estratégias para a transformação de todos os envolvidos, que passam a conviver num espaço comum, produzindo mundos possíveis, mitigando as barreiras das desigualdades que nos distanciam.

Atentos aos alertas de Oliveinstein acerca do cenário de mentiras que envolve a questão das relações problemáticas com drogas – ter de mentir que não gosta, ter que mentir que quer parar, ter que mentir que não usou, ter que mentir que parou -, temos vivenciado a construção das verdades que queremos para nós; descoberto o que queremos ser; e explicitado, de forma às vezes dolorosa, as grandes forças estruturais que nos impendem.

Atualmente, quando a pandemia assola os ventos da globalização, tem afetado, sobremaneira, diferentemente as diferentes populações e, para além de uma requentada concepção culpabilizante e individualizante de “grupos de risco”, amplificando a tensão entre posturas solidárias/democráticas e outras genocidas, fascistas, condizentes com a necropolítica em curso.

Se as medidas para minorar a repercussão comunitária da pandemia envolvem acesso preventivo a bens escassos e a sistemas universais, capilarizados e complexos, como propor a populações submetidas a condições indignas de moradia e trabalho, e mesmo aquelas que nem mesmo isso possuem, que se comprometam com ações de distanciamento social e higiene recorrente? Na busca pelos possíveis, há que se reduzir os danos aos não acessam água, itens de higiene, casa, privacidade, e que, do Estado, somente encontram respingos de violência e abandono. Que “vendem o almoço para comer na janta”; que “dão seus pulos” para vivenciar algumas poucas escolhas que impõem às suas invisíveis vidas. Muitas vezes, essas pequenas escolhas ou imposições são criminalizadas, num iato para alcançar justiça social. A emergência nos pede medidas rápidas de ampla proteção para efetivar o princípio de equidade. Com Paulo Freire, afirmamos: A educação não muda o mundo. A educação muda as pessoas. As pessoas mudam o mundo.

 

 



[1] Curso de Terapia Ocupacional - Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva - Coordenadora da Câmara de Extensão e Cultura Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP – BS - Coordenadora Região Sudeste - Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME - Presidente Conselho Municipal de Política sobre drogas de Santos – COMAD.

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