Profa. Dra. Luciana Togni de Lima e Silva Surjus[1]
Em 2016, recém chegada como professora na Unifesp, vinda de
uma trajetória de atuação na gestão de políticas públicas de saúde mental,
propus que submetêssemos à finada Secretaria Nacional de Política sobre Drogas
(Senad) um Centro Regional de Referência (CRR) pelo Campus. Vivíamos o
constrangimento do governo de Dilma e como sempre, em minhas reações a crises,
trabalhava freneticamente para descobrir os caminhos institucionais, enquanto
perdia quase que diariamente interlocutores no governo federal, um a um sendo
desligado ou desligando-se. Como já me alertava o amigo Leon Garcia, eu vinha
de um ritmo da gestão, e teria problemas com os tempos da Universidade.
Atravessando hierarquias desconhecidas, levando algumas broncas, mas sendo solidariamente
acolhida, acabamos por morrer na praia: da ampliação de 50 CRR proposta pela
Senad, creio que não tenha nascido nenhum.
Renomeado como Centro Regional de Formação (CRF) em
Políticas sobre drogas e Direitos Humanos, esse espaço se estrutura há 3 anos
como programa de extensão universitária, propondo práticas formativas
emancipatórias enquanto estratégias de inovação social, gestado e gerido pelo
Grupo de Pesquisa e Extensão DiV3rso: Saúde Mental, Redução de Danos e Direitos
Humanos, composto por docentes, estudantes de graduação e pós graduação e comunidade
do entorno. As ações desenvolvidas visam
a qualificação para diferentes políticas sociais de interface com a temáticas
das drogas, envolvendo, principalmente, o compromisso com a transformação da
realidade social que envolve as pessoas em uso problemático e em situação de vulnerabilidade,
sob a perspectiva dos Direitos Humanos, garantindo formação acadêmica em
consonância com a realidade local e os contextos reais de vida. O que se propõe
é materializar o sonho de uma educação transformadora, intensificando a
porosidade entre universidade e comunidade; entre alunas e docentes; entre
trabalhadores e pessoas atendidas nos diferentes serviços dos municípios da
Baixada Santista (Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Monguaguá, Peruíbe,
Praia Grande, Santos e São Vicente).
Das transformações decorrentes do CRF ressaltamos a
integração com as atividades de ensino na graduação, na curricularização da
extensão, e a promoção de lugar protagonista das pessoas atravessadas pela
criminalização de drogas de usos inscritos nos territórios vulnerados. A
abordagem metodológica crítica e inventiva tem promovido modificações nas
relações entre a universidade e as pessoas que vivem nas ruas de seu entorno, reconhecida
enquanto COMUNIDADE, o que não se dá sem incômodos e resistências.
Tomando o desafio da permanência estudantil, fundamental
para a sustentação de uma política de universalização do ensino superior, mote
da existência do Campus Baixada Santista, visamos incidir na diminuição das desigualdades que retiram o
universo acadêmico do horizonte de grande parte da população, estabelecendo a
captação de recursos como uma das metas dos participantes, no tocante à
sustentação dessa experiência, o que vem ocorrendo de modo a dar materialidade
à promoção de direitos. Explico: alunas e alunos, e membros da comunidade, com
a oportunidade de contar com bolsas de extensão, numa legitimação do esforço
afetivo e intelectual no desenvolvimento das ações. A captação de recursos é
realizada de forma atenta e planejada por todo o coletivo, e tem sido exitosa
junto a mandatos de parlamentares progressistas e iniciativas de apoio
institucional à extensão.
Articulado a diferentes coletivos atuantes no campo do
ensino e da redução de danos já desenvolvemos formações em parceria com a
Fiocruz Brasília, Univesp, Centro de Convivência é de Lei, e recentemente numa
inciativa totalmente virtual apoiada pela Abrasme, Reduc, Renfa, MBRD, Aborda,
Intercambiantes BR/SP, Movimento Nacional de População em Situação de Rua e
Jornal Vozes da Rua.
Publicamos dois ebooks que reúnem discussões acerca da RD,
cotejadas com o registro dessas experiências locais[2],
e mais recentemente já incluindo capítulos acerca da repercussão dessas ações
sobre as histórias, contatas pelas próprias pessoas[3].
O envolvimento formal de pessoas da comunidade com histórias
de uso de drogas e em situação de vulnerabilidade, promovem legitimação de sua
experiência enquanto saber fundamental para avançar na construção de respostas
que atendam às suas reais necessidades. Ampliando o que podem ser oportunidades
e habilidades para o trabalho, há mobilidade do que é central na vida,
engendrando inclusão por meio de lugares sociais de relevância. A metodologia
provocou a lateralidade no processo de construção de conhecimento, apostando
nas trocas e na diversidade de atores como estratégias para a transformação de
todos os envolvidos, que passam a conviver num espaço comum, produzindo mundos
possíveis, mitigando as barreiras das desigualdades que nos distanciam.
Atentos aos alertas de Oliveinstein acerca do cenário de
mentiras que envolve a questão das relações problemáticas com drogas – ter de
mentir que não gosta, ter que mentir que quer parar, ter que mentir que não
usou, ter que mentir que parou -, temos vivenciado a construção das verdades
que queremos para nós; descoberto o que queremos ser; e explicitado, de forma
às vezes dolorosa, as grandes forças estruturais que nos impendem.
Atualmente, quando a pandemia assola os ventos da
globalização, tem afetado, sobremaneira, diferentemente as diferentes
populações e, para além de uma requentada concepção culpabilizante e
individualizante de “grupos de risco”, amplificando a tensão entre posturas
solidárias/democráticas e outras genocidas, fascistas, condizentes com a
necropolítica em curso.
Se as medidas para minorar a repercussão comunitária da
pandemia envolvem acesso preventivo a bens escassos e a sistemas universais,
capilarizados e complexos, como propor a populações submetidas a condições
indignas de moradia e trabalho, e mesmo aquelas que nem mesmo isso possuem, que
se comprometam com ações de distanciamento social e higiene recorrente? Na
busca pelos possíveis, há que se reduzir os danos aos não acessam água, itens
de higiene, casa, privacidade, e que, do Estado, somente encontram respingos de
violência e abandono. Que “vendem o almoço para comer na janta”; que “dão seus
pulos” para vivenciar algumas poucas escolhas que impõem às suas invisíveis
vidas. Muitas vezes, essas pequenas escolhas ou imposições são criminalizadas, num
iato para alcançar justiça social. A emergência nos pede medidas rápidas de
ampla proteção para efetivar o princípio de equidade. Com Paulo Freire, afirmamos:
A educação não muda o mundo. A educação muda as pessoas. As pessoas mudam o
mundo.
[1]
Curso de
Terapia Ocupacional - Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva - Coordenadora
da Câmara de Extensão e Cultura Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP –
BS - Coordenadora Região Sudeste - Associação Brasileira de Saúde Mental –
ABRASME - Presidente Conselho Municipal de Política sobre drogas de Santos –
COMAD.
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