Lua Sá Dultra [1]
De dentro da sala, escuto as vozes das pessoas já conhecidas que chegam:
-“Ô, Maria Bonita! Ô, Lampeona! Cheguei!”. Pela entonação e volume, enquanto escuto a pessoa que tá cá dentro, penso na ordem de chamada, e vamos nessa de tentar estratificar vulnerabilidades… Às vezes dá certo, muitas dá errado. Coisa boa foi realizar que ninguém educa ninguém e nem está ali pra isso.
Entre uma pessoa e outra, a gente tenta agilizar aquelas coisas mais simples: adianta a coleta do escarro de um, corrige uma receita, entrega os medicamentos de outra, dá tchau pra um bebê que nasceu e você só conhecia de dentro da barriga. Volta o cara do escarro com xixi no potinho, pega novo coletor, explico: “não é xixi, é escarro”. Falhamos na comunicação.
O corredor é o ponto alto. Nunca me furtei de ir ao corredor, gosto de ver o que está acontecendo: casais apaixonados que querem engravidar, casais brigando e gritando, um já almoçando porque conseguiu desenrolar a quentinha, uma outra discutindo com o porteiro porque quer entrar com a cachorra, uma ouvindo um radinho nas alturas, ainda outro ajudando o colega a organizar os medicamentos. Há também muita solidariedade e beleza. Quando minha avó morreu, muitas foram na unidade só me dar um abraço. Quando ‘apertam meu juízo’, digo que vou botar todo mundo dentro da sala e eles riem. Outros seguem xingando, e assim vamos.
É tenso, na maioria das vezes é tenso. E agora, com tira luva, bota luva, passa álcool gel... ai me contaminei, volta tudo, tá mais tenso ainda.
A realidade das pessoas que vivem nas ruas atesta sua capacidade extraordinária de resistir às situações mais adversas. Resistem às balas da guerra às drogas, resistem aos alagamentos da cidade, a infecções extensas, subagudas, à fome, à tristeza, às dores múltiplas do racismo. O que é um vírus diante disso tudo? “Eu sou micóbrio!”, assim me dizem.
Morro um pouco e nasço um pouco, a cada dia, sendo médica de família e comunidade em uma equipe de Consultório na Rua. Que eu siga aberta a ouvir com o mesmo interesse uma história clínica difícil e um senhor cordelista que, no olho do furacão, entra na sala e diz que foi apenas me recitar um cordel. Afinal, “quem faz um poema salva um afogado”1, e assim a gente vai se salvando.
Parabéns pra nós, neste 19 de maio de 2020, Dia Mundial da Médica e do Médico de Família e Comunidade.
Referências Bibliográficas: 1 – Quintana, Mário. “Emergência”. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
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