sábado, 6 de junho de 2020

Recaída e Recursividade – diferentes olhares para um mesmo fenômeno?


Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque [¹]  
Solange Aparecida Nappo [²]


Fonte: [3]
          Desde que nos deparamos no processo do meu doutoramento na Medicina Preventiva da UNIFESP (2013-2017) com as discussões e reflexões acerca do constructo teórico/clínico da “recaída”, venho tentando compreender melhor sobre tal questão, especialmente a respeito da insuficiência desta concepção biomédica e reducionista.  Consequentemente surgiu a defesa do uso do termo “recursividade”, pois chegamos à conclusão que o conceito de “recaída” não se associa acertadamente ao cuidado das pessoas que usam drogas, à luz da Redução de Danos (RD).
       Quando do objeto de pesquisa - “recaída no uso do crack” -, pudemos ampliar as reflexões em relação a quaisquer substâncias psicoativas, visto que, embora os tratamentos disponíveis tragam uma diminuição da gravidade dos problemas psicossociais causados pelo uso abusivo ou problemático de drogas, nenhum tratamento conseguiu “resolver” a “recaída” no seu sentido implícito: haja vista que só recai quem parou de usar!
        Assim, buscando ampliar o conhecimento sobre o tema, a tese, que foi de caráter qualitativo, teve como objetivo investigar o fenômeno da “recaída” junto às pessoas que abusavam do crack e que estivessem em fase final de tratamento, mas também que vivenciaram episódios de “recaídas” para perguntarmos sobre os motivos desencadeadores desse processo.
        O campo da pesquisa se deu em três espaços de cuidado: os Centros de Atenção Psicossociais em álcool e outras drogas (Caps AD), as Comunidades Terapêuticas (CT) e as Clínicas Médicas (CM). Apesar de não ser o foco da pesquisa, foi impressionante observarmos, enquanto dados secundários, que o proibicionismo e o antiproibicionismo, e também modelos diversos de tratamento transpassavam os espaços que teoricamente não seriam afeitos àquele paradigma. Assim, nos deparamos com Caps proibicionistas e com CT’s antiproibicionistas, Clínicas Médicas psicossociais e Caps biomédicos. A incongruência teórica entre as práticas foi algo que acabou sendo muito observado (Rameh-de-Albuquerque, 2017).
             Entrevistamos 120 pessoas divididas igualmente entre Recife - PE e São Paulo – SP; considerando-se também as regiões metropolitanas. As categorizações que emergiram das narrativas dos entrevistados foram divididas em três blocos temáticos: motivos associados às pessoas (MP), motivos associados à droga (MD), motivos associados ao ambiente (MA) (Rameh-de-Albuquerque, 2017). Destes, as motivações mais citadas, pertenceram à categoria dos MP, sendo mais expressivas as dificuldades e/ou inabilidades das pessoas em lidarem com suas emoções, reduzindo a compreensão hegemônica de que os motivos associados à droga são o maior fator para “recaída” (Rameh-de-Albuquerque e Nappo, 2018).
         Outro destaque revelado foi justamente o que coloca o conceito de “recaída” em cheque: inapropriado para a compreensão do fenômeno da repetição à luz da Redução de Danos. Quando captamos a Teoria da Complexidade (Maturana 1980, Morin, 2000), para pensarmos sobre o fenômeno, podemos considerar o princípio da recursividade como ponto de partida fundamental a um outro olhar sobre esse processo.
              Observamos que a maioria dos autores que estudam a “recaída” ainda trabalha com o conceito de modo linear. Mesmo aqueles que não esperam a “recaída” como um fenômeno comum e que estudam e trabalham com a redução de danos findam por se referir às pessoas que usam drogas como àqueles que “recaem” (Rameh-de-Albuquerque, 2017). Pois bem, se na Redução de Danos as pessoas podem fazer escolhas em minorar seus problemas decorrentes do uso de drogas, sem necessariamente impedir esse processo, a abstinência passa a ser uma das opções, porém não será a única opção. Já no constructo da “recaída”, a abstinência é a meta sempre buscada, o que torna essa concepção inviável para aqueles que compreendem o uso de drogas como uma possibilidade para as pessoas que não querem ou não podem parar de usar substâncias.
         Assim, a recursividade que é “[...] o movimento inerente a todos os seres vivos impulsionando- os para mudanças em seu próprio sistema ou na interação com outros sistemas” (Rameh-de-Albuquerque, 2017, p.22) passa a ser o processo previsto para parte das pessoas que usam drogas em suas possibilidades de ser e estar no mundo.
Outra reflexão reflete sobre alguns aspectos comumente negligenciados pelos profissionais e cuidadores em geral: durante o tratamento, os processos intersubjetivos referentes aos movimentos recursivos das pessoas indicam os aprendizados e ressignificações diante do abuso de drogas, independentemente dos modelos aos quais as instâncias de cuidado estejam filiadas. Por vezes, o tratamento é “zerado” quando a pessoa tem lapsos, recai ou usa novamente a droga.
              Caso os profissionais e cuidadores operem à luz da RD, a recursividade passa a ser um princípio ancorado na possibilidade de uso da substância e não da abstinência total, sem que tal questão não faça perder todo o tratamento já investido, realizado ou mesmo as aprendizagens conquistadas, visto que essas poderão fazer sentido a qualquer tempo para a pessoa: “A recursividade acaba por apontar um processo de autoconhecimento, no qual a cada repetição do uso de drogas, a pessoa experimenta outras possibilidades de desfecho para o que está vivenciando” (Rameh-de-Albuquerque e Nappo, 2019, p 154).
               Esperamos, de modo ousado, que tais reflexões possam contribuir para a melhoria da atenção prestada às pessoas que buscam tratamento, especialmente quanto à mudança de visão e prática clínica dos profissionais e cuidadores que estão no “corpo a corpo” do cuidado junto às pessoas que abusam das drogas.

Referências:

Maturana, H.R & Varela, F.J. (1980). Autopoieses anda cognition: the realization of the living. Boston: Reidel.

Morin, M. (2000). Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS. Para navegar no século XXI: Tecnologias do Imaginário e Cibercultura. Porto Alegre: Edipucrs, p. 1-27.

Rameh-de-Albuquerque, R. C. (2017). Da pessoa que recai à pessoa que se levanta: a recursividade
dos que usam crack. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. São Paulo, UNIFESP.

Rameh-de-Albuquerque, R. & Nappo, S. (2018), Reasons to crack consumption relapse. Users’ perspective. Rio de Janeiro: Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 67(3):194-200.

Rameh-de-Albuquerque, R. C. e Nappo, S. A. Padrão de consumo de drogas com ênfase no crack e a recursividade deste padrão. In: Fraga, P. e Carvalho, M. C. (Orgs). Drogas e sociedade: estudos comparados Brasil e Portugal. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019.

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[1]  Redutora de Danos. Psicóloga do IFPE, tutora do Mestrado em Psicologia da Saúde e da graduação em Psicologia da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Pesquisadora do GEAD/UFPE. Membro do Intercambiantes, ABRASME, ABRAMD e ABRASCO.

[2] Farmacêutica. Docente do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora do CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Departamento de Ciências Farmacêuticas.

[3] 
https://www.google.com/search?q=recursividade&sxsrf=ALeKk03OUGcvEhiH7lU3Jb6246k0PuQR_A:1590620424052&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjpiOTqktXpAhUBDrkGHXrEARwQ_AUoAXoECBMQAw&biw=1366&bih=575#imgrc=72pH7WP1CI3C_M

Programa Atitude: uma outra possibilidade de cuidado

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