Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque [¹]
Solange Aparecida Nappo [²]
Fonte: [3] |
Quando do objeto de pesquisa - “recaída no uso do crack” -, pudemos ampliar as reflexões em relação a quaisquer
substâncias psicoativas, visto que, embora os tratamentos disponíveis tragam
uma diminuição da gravidade dos problemas psicossociais causados pelo uso
abusivo ou problemático de drogas, nenhum tratamento conseguiu “resolver” a
“recaída” no seu sentido implícito: haja vista que só recai quem parou de usar!
Assim, buscando ampliar o conhecimento sobre o tema, a tese, que foi de
caráter qualitativo, teve como objetivo investigar o fenômeno da “recaída”
junto às pessoas que abusavam do crack e que estivessem em fase final de
tratamento, mas também que vivenciaram episódios de “recaídas” para
perguntarmos sobre os motivos desencadeadores desse processo.
O campo da pesquisa se deu em três espaços de cuidado: os Centros de
Atenção Psicossociais em álcool e outras drogas (Caps AD), as Comunidades
Terapêuticas (CT) e as Clínicas Médicas (CM). Apesar de não ser o foco da
pesquisa, foi impressionante observarmos, enquanto dados secundários, que o
proibicionismo e o antiproibicionismo, e também modelos diversos de tratamento
transpassavam os espaços que teoricamente não seriam afeitos àquele paradigma.
Assim, nos deparamos com Caps proibicionistas e com CT’s antiproibicionistas,
Clínicas Médicas psicossociais e Caps biomédicos. A incongruência teórica entre
as práticas foi algo que acabou sendo muito observado (Rameh-de-Albuquerque,
2017).
Entrevistamos 120 pessoas divididas igualmente entre Recife - PE e São
Paulo – SP; considerando-se também as regiões metropolitanas. As categorizações
que emergiram das narrativas dos entrevistados foram divididas em três blocos
temáticos: motivos associados às pessoas (MP), motivos associados à droga (MD),
motivos associados ao ambiente (MA) (Rameh-de-Albuquerque, 2017). Destes, as
motivações mais citadas, pertenceram à categoria dos MP, sendo mais expressivas
as dificuldades e/ou inabilidades das pessoas em lidarem com suas emoções,
reduzindo a compreensão hegemônica de que os motivos associados à droga são o
maior fator para “recaída” (Rameh-de-Albuquerque e Nappo, 2018).
Outro destaque revelado foi justamente o que coloca o conceito de
“recaída” em cheque: inapropriado para a compreensão do fenômeno da repetição à
luz da Redução de Danos. Quando captamos a Teoria da Complexidade (Maturana
1980, Morin, 2000), para pensarmos sobre o fenômeno, podemos considerar o
princípio da recursividade como ponto de partida fundamental a um outro olhar
sobre esse processo.
Outra reflexão reflete sobre alguns aspectos comumente negligenciados
pelos profissionais e cuidadores em geral: durante o tratamento, os processos intersubjetivos
referentes aos movimentos recursivos das pessoas indicam os aprendizados e
ressignificações diante do abuso de drogas, independentemente dos modelos aos
quais as instâncias de cuidado estejam filiadas. Por vezes, o tratamento é
“zerado” quando a pessoa tem lapsos, recai ou usa novamente a droga.
Caso os profissionais e cuidadores operem à luz da RD, a recursividade
passa a ser um princípio ancorado na possibilidade de uso da substância e não
da abstinência total, sem que tal questão não faça perder todo o tratamento já
investido, realizado ou mesmo as aprendizagens conquistadas, visto que essas
poderão fazer sentido a qualquer tempo para a pessoa: “A recursividade acaba
por apontar um processo de autoconhecimento, no qual a cada repetição do uso de
drogas, a pessoa experimenta outras possibilidades de desfecho para o que está
vivenciando” (Rameh-de-Albuquerque e Nappo, 2019, p 154).
Esperamos, de modo ousado, que tais reflexões possam contribuir para a
melhoria da atenção prestada às pessoas que buscam tratamento, especialmente
quanto à mudança de visão e prática clínica dos profissionais e cuidadores que
estão no “corpo a corpo” do cuidado junto às pessoas que abusam das drogas.
Referências:
Maturana, H.R & Varela, F.J. (1980). Autopoieses
anda cognition: the realization of the living. Boston: Reidel.
Morin, M. (2000). Da necessidade de um pensamento
complexo. In: MARTINS. Para navegar no século XXI: Tecnologias do Imaginário e
Cibercultura. Porto Alegre: Edipucrs, p. 1-27.
Rameh-de-Albuquerque, R. C. (2017). Da pessoa que
recai à pessoa que se levanta: a recursividade
dos que usam crack. Tese (Doutorado) – Universidade
Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva. São Paulo, UNIFESP.
Rameh-de-Albuquerque, R. & Nappo, S. (2018),
Reasons to crack consumption relapse. Users’ perspective. Rio de Janeiro:
Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 67(3):194-200.
Rameh-de-Albuquerque,
R. C. e Nappo, S. A. Padrão de consumo de drogas com ênfase no crack e a
recursividade deste padrão. In: Fraga, P. e Carvalho, M. C. (Orgs). Drogas e sociedade: estudos comparados Brasil e Portugal. - 1. ed. - Rio
de Janeiro: Letra Capital, 2019.
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[1] Redutora de Danos. Psicóloga do IFPE, tutora do Mestrado em Psicologia da Saúde e da graduação em Psicologia da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Pesquisadora do GEAD/UFPE. Membro do Intercambiantes, ABRASME, ABRAMD e ABRASCO.
[2] Farmacêutica. Docente do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora do CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Departamento de Ciências Farmacêuticas.
[3]
https://www.google.com/search?q=recursividade&sxsrf=ALeKk03OUGcvEhiH7lU3Jb6246k0PuQR_A:1590620424052&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjpiOTqktXpAhUBDrkGHXrEARwQ_AUoAXoECBMQAw&biw=1366&bih=575#imgrc=72pH7WP1CI3C_M
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https://www.google.com/search?q=recursividade&sxsrf=ALeKk03OUGcvEhiH7lU3Jb6246k0PuQR_A:1590620424052&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjpiOTqktXpAhUBDrkGHXrEARwQ_AUoAXoECBMQAw&biw=1366&bih=575#imgrc=72pH7WP1CI3C_M