quarta-feira, 26 de maio de 2021

Programa Atitude: uma outra possibilidade de cuidado


    
                                                                                              

Malu Freire [1]


O Programa de Atenção Integral aos Usuários de Drogas e seus Familiares (Programa ATITUDE) criado em 2011, vinculado ao Plano Estadual de Segurança Pública do estado de Pernambuco (Pacto Pela Vida) como estratégia de prevenção social. Essa perspectiva está prevista na Política Estadual sobre Drogas (Lei n° 14.561, de 26 de dezembro de 2011), cujo principal objetivo visa garantir a proteção integral ao usuário de crack e outras drogas que vai desde os cuidados primários à preservação da integridade física, o resgate do convívio familiar, atendimento de pessoas vulneráveis e ameaçadas pelo tráfico de drogas. O ATITUDE tem atuação planejada em bases territoriais, cuja diretriz prioriza os universos populacionais de maior vulnerabilidade, risco pessoal e/ou social relacionados à violência e à criminalidade decorrente do uso de drogas. A metodologia do programa foi elaborada em consonância com as diretrizes do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), referenciais da Redução de Danos e prevenção à violência. Organiza-se em quatro tipos de serviços, tipificados pelo SUAS: Atitude nas Ruas (serviço de abordagem social); Centro de Acolhimento e Apoio (casa de passagem), Centro de Acolhimento Intensivo (acolhimento institucional) e Atitude Moradia (aluguel social ou república). O Atitude nas Ruas é um serviço móvel/itinerante e territorializado, ofertado de forma continuada e programada em ruas, praças, embaixo de viadutos, comunidades, entre outros, com objetivo de construir processos de vinculação para a garantia de direitos, redução de riscos e de danos associados ao consumo de crack e outras drogas. O Centro de Acolhimento e Apoio funciona 24h com baixa exigência, acolhimento diário e equipe multidisciplinar, visando assegurar atendimento imediato, humanizado e os cuidados primários. O Centro de Acolhimento Intensivo também funciona 24h, em caráter residencial, cuja média de permanência atual é de 3 meses, dependendo do caso. Tem por objetivo construir um novo projeto de vida, de proteção às situações de ameaça de morte, decorrentes de debitos adquiridos para consumo de drogas com o trafico, resgate de vínculos afetivos e familiares e reinserção socioprodutiva. O Atitude Moradia constitui-se de residências individuais ou coletivas alugadas por uma média de seis meses destinado ao público que não pode retornar ao território de origem por continuar em situação de ameaça ou por não ter referência comunitária devido a situação de rua, estimulando o desenvolvimento da autonomia, com condicionalidades na educação, saúde e trabalho.


O Programa ATITUDE é inovador por apresentar intervenções que se aproximam das realidades dos usuários de drogas e seus familiares que se encontram em alguma situação de ameaça.


Atualmente, através de suas modalidades de atendimento consegue alcançar um número significativo de usuários, seja no território ou na adesão voluntária aos serviços promovendo a diminuição dos prejuízos sociais e da violência. A capacidade diária é de pelo menos 240 atendimentos psicossociais, com encaminhamentos para as redes de atenção em saúde e assistência social, cidadania, educação e formação profissional. O programa é inovador ainda por ter um serviço voltado para mulheres gestantes e nutrizes com possibilidade de acolhimento institucional dos filhos recém-nascidos, e mulheres transexuais com ou sem filhos. Assim, ampara-se na relação de confiança e de vínculo, e possibilita espaços de cuidado, investindo na construção de projetos de vida.


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[1] Malu Freire é Psicóloga Clinica, especialista em saúde coletiva com ênfase em saúde da família, redutora de danos, 18 anos de experiência em saúde mental, superintendente de cuidado e reinserção social na Secretariade Políticas de Prevenção a Violência e às Drogas, no Governo do Estado de Pernambuco.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Sinais da chamada Contra-Reforma Psiquiátrica

 


Altieres Edemar Frei[1]

 

Percebe-se o avanço da chamada Contra-Reforma Psiquiátrica[2] por diversos pontos de vista. É uma pena, mas os sinais parecem estar em toda parte. Quase dá pra perder as contas: por mais que o debate sobre a luta antimanicomial e suas calibragens com o antiproibicionismo e antirracismo pareçam enfim, terem ganhado eco em outras parcelas da sociedade, a maré definitivamente não está pra peixe.

 

Primeiro sinal disso é a dotação orçamentária cada vez mais robusta de recursos públicos em instituições asilares: quem conhece as Comunidades Terapêuticas[3] não estranha mais o milheiro de blocos ou o metro de areia e pedra dando indícios da expansão do negócioincluindo o 'puxadinho' para adolescentes. Obras a todo vapor. As diárias compensam e, assim, vem mais beliche por aí!

 

Outros sinais mais pulverizados estão em esquinas do bairro -- o meu, e talvez o seu. Lembro do tempo em que morava onde tinha vários botecos ou igrejas em cada esquina. Hoje são farmácias, redes que não param de expandir seus negócios e franquias. É domingo, e tem alguma drugstore aberta agora, com aquele monte de lâmpada branca e ar refrigerado. Tá entediado? Vai uma vitamina aí?

 

São redes que escancaram o poderio do império farmacêutico no maior consumidor mundial de ansiolíticos. Yes, nós temos Clonazepan! Ali, agora, salgadinhos, refrigerantes e dipironas estão ao alcance das mãos e, com isso, tanto eu, quanto você e sua vizinha sabemos o quanto alprazolans, fluoxetinas, venlafaxinas ou derivados do tipo caem no gosto popular: tem para diferentes públicos e faixas etárias. Já tomou um desses, vizinho?

 

Nesse cenário naturalizado”, as medicações psicotrópicas ou de tarja preta tem apelo cada vez maior às pessoas que apresentam algum tipo de sofrimento psíquico. Tá logo ali, basta sua receita, com ou sem Cebolitos, com ou sem indicação de psicoterapia. Com isso, o discurso sobre as alteridades parece, cada vez mais, revestido de nomes de doença e, não raro, pessoas saem satisfeitas de consultórios psiquiátricos dizendo: sabia que era bipolar, por isso sou assim, agora sei quem sou eu.

 

Dá-lhe identidades: diagnósticos caem bem em tempos como estes e, paradoxalmente, aliviam questões existenciais. É como conseguir explicar os dilemas da vida por ser gêmeos com ascendente em aquário”. Não que eu duvide que isso possa ser problemático, mas daí a somar dois mais dois e explicar toda a existênciaNão parece ser tão simples. Ou não dura muito. Qual seu CID hoje?

 

Dizem que política é mesmo uma questão de percepção.

 

Volto aos sinais da contra-reforma psiquiátrica: você tem lido as notícias sobre a atenção primária em saúde? Viu o que estão fazendo com os CAPS e a lógica da atenção psicossocial? E essa de internar adolescentes a rodo” em Comunidades Terapêuticas? Resta-nos anotar os sinais, fazer as contas e manter a mente quieta, a espinha ereta e, se der pra seguir a canção, o coração tranquilo em meio à luta para que algo se mantenha em pé diante toda tempestade fascista que parece querer nos tratorar -- e, claro, afinar nossos instrumentos, tendo em vista que se é pra fazer “luta antimanicomial” sem meter o pé na porta na Guerra às Drogas, parece melhor continuar no coma em clubinhos monárquicos repetindo discursos repletos de naftalina, à espera dos carguinhos ou minutos de fama no dezoito de maio.

 

Volto aos sinais que estão por aí: vi mais outro dia desses (e esse quase me arrancou os olhos da cara), quando estava no supermercado que inaugurou ano passado perto de casa. Não tinha entrado lá até semana passada por conta do privilégio de ter sido quarentener-raiz, até que consegui tomar uma das controversas doses da vacina Astrazeneca-Oxford destinada aos trabalhadores autônomos de clínicas cá na republiqueta curitibana -- predicado que seria risível, não fosse trágico ou sintomático.

 

Foi mesmo um experimento ter ido no tal supermercado novo: atrofiado de convívio social e relativamente vacinado, flanei trêmulo entre corredores largos, vaporizador no setor de verdura, caixas do tipo pague você mesmoe amplo espaço. Me esforçava para fazer de conta que estava sempre por ali e tentava superar o meu pânico e lidar com tantas luzes. Me esforçava para fazer contas com novos números na cara: um quilo de feijão agora, oito contos. Dez pãezinhos agora, sete contos.

 

Continuava com as contas todas ali no setor de produtos veganos quando apareceu um moleque, da idade do meu filho mais velho, voltando de alguma peleja futebolística, carregando com ar blasé seus danoninhos de dois dígitos. Ele trajava um fardamento branquinho: meião, calção e camisa de futebol. Sempre reparo qualquer camisa de time. Nem penso. É automático. Parei pra ver se era de um time conhecido aqui da vila, mas não reconheci nem escudo. Só reparei no patrocínio: Clínica Psiquiátrica Heidelberg, em letras garrafais.  

 

Quase cocei os olhos por trás dos óculos por cima da máscara, mas lembrei que não tinha passado álcool gel fazia quase três minutos. Um time infantil patrocinado por uma clínica psiquiátrica de grande poderio econômico em Curitiba, sede inclusive de residências em psiquiatria: alô justiça da infância e juventude, artigo 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente! Pode isso, produção?

 

E tudo parecia naturalizado, com aquela música de elevador, como aqueles hambúrgueres veganos de soja transgênica em meio às geladeiras futuristas, com o moleque sem sorriso: até ornava.

 

Sinais dos tempos, pensei comigo, antes de voltar às contas. E penso nisso até agora.



[1] Altieres Edemar Frei, psicólogo clínico (CRP PR 08-20211), concluiu doutoramento em ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e mestrado em psicologia clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. Atualmente trabalha em clínica tateando esquizoanálise enquanto dobra da psicanálise, em docência e como assessor de pesquisas no CRP PR. É autor de Todo Educador é Social” (Editora Intersaberes, 2019) e de artigos nas temáticas: luta antimanicomial, cartografia da RAPS, antiproibicionismo e biopolítica. Contatos: altieresfrei@gmail.com

[2] A Contra-Reforma Psiquiátrica aqui se faz definida como o processo que aponta para os desmontes nas quatro dimensões da Reforma Psiquiátrica, tal qual indicada por Amarante (2007), a saber: i) a dimensão dos equipamentos substitutivos, com o recuo de serviços estratégicos e a estagnação do investimento em novos serviços, especialmente na atenção primária em saúde; ii)  a dimensão jurídica, com seus retrocessos e ameaças de revogação de leis, portarias e marcos legais; iii)  a dimensão técnico-assistencial com a formação de profissionais regidos por paradigmas tecnocráticos, de pouco acúmulo curricular no âmbito de políticas públicas e garantia de direitos e sem supervisões clínico-institucionais; e iv) a dimensão sociocultural, com a perpetuação cada vez mais crescente de novas réguas de normalidade no discurso vigente e medicalização das alteridades.

[3] As Comunidades Terapêuticas no Brasil dista em muito do seus projetos originais e contra-culturais idealizados por Maxwell Jones e seus sucessores nos idos dos anos 1950 em meio à crítica das instituições asilares mundo afora. Aqui, em parte pelo atraso com que tivemos para encarar o debate antiproibicionista inclusive no meio antimanicomial -- um mea culpa necessário -- essas instituições  se firmaram como único espaço de cuidado além do manicomial até a instalação dos CAPS AD e foram aparelhadas em sua maioria por projetos atravessados por dogmas e retificações de caráter comuns às religiosidades neopentecostais, em uma disputa de mercado de bens de salvação.

segunda-feira, 15 de março de 2021


 Resoluções do Intercambiantes - 2021 sobre Realização do II Encontro Nacional - (25, 26 e 27/03/21)


1. Formato: Online

 2. Datas: 
- 25 e 26/03 (quinta e sexta feira) de 17h as 20h.
- 27/03 (sábado) de 14h30minh as 18h.

3. Comissão organizadora do Encontro Br:
- Raquel / Ana Regina/MG; 
- Alyne/ Alda/ PE;
- Lurdinha/Eroy/ Celi/SP;
- Rosa/AL

4. Eixos:
-Eixo 1: Necropolítica/Viventes de Rua; 
-Eixo 2: Cuidado com Saúde Mental dos Trabalhadores; 
-Eixo 3: tema livre definido por cada estado/núcleo regional.
 
5. Inscrições 
5.1. Inscrições de participantes: 
Todos os participantes do Encontro deverão realizar suas inscrições individuais até  o dia 25/03/2021 no link: https://www.sympla.com.br/ii-encontro-nacional---coletivo-intercambiantes-brasil__1147289.
5.2 Inscrições de trabalhos:  
Os Núcleos Regionais poderão inscrever trabalhos em 1, 2 ou 3 eixos até o dia 19/03/2021.
Apenas um representante de cada Núcleo Regional deverá fazer a inscrição de trabalhos no link: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSdofqylZkM5xA6M7ZA5lOSMi-gnmC6N6BiQ3GV7fCnj9r-RxQ/viewform?usp=sf_link.
Obs.: Não haverá inscrições para apresentação de trabalhos individuais. Apenas trabalhos coletivos dos Núcleos Regionais serão aceitos para apresentação.

6. Atividades do encontro 
Os trabalhos serão apresentados em formato PowerPoint e terão tempo definido de apresentação conforme a quantidade de inscrições nos eixos.
Nos dias 25 e 26/03, as duas primeiras horas do Encontro serão destinadas à apresentação de trabalhos. A terceira hora será destinada a diálogos livres sobre os temas apresentados.
No dia 27/03, as duas primeiras horas serão destinadas a diálogos livres sobre os temas apresentados pelos Núcleos Regionais. A terceira e última hora do Encontro será reservada para o planejamento de ações dos Intercambiantes Brasil para o ano de 2021.

LEMBRETES
- Cada núcleo do Intercam 2021 deve levar estas decisões para seu estado;
- NOSSA PRÓXIMA REUNIÃO FOI MARCADA PARA O DIA 12/03 (sexta feira) das 14:30h às 15:30h.
Contamos com a participação de todas/os/es! Resistir é preciso!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

CISARTE e Intercambiantes-SP inauguram cozinha-escola voltada a profissinalização dos viventes do rua.

 

Fonte: Acervo das autoras


 

- Você tem fome de que?

 

Os viventes de rua, tem fome de casa, comida, escuta, acolhimento, garantia de direitos e muito mais...


O João Paiva, empresário, tinha fome de realizar um trabalho voluntário...

 

O centro de inclusão pela arte, cultura, trabalho  e educação,- CISARTE através do Darcy  Costa ,coordenador,  e da Luciene Inácio, administradora, na sede do movimento nacional de população de rua (MNPR)  tinham fome de ter uma cozinha  industrial  para auxiliar na profissionalização dos viventes de rua....

 

A Eroy Silva (psicóloga e ativista social) e a Lurdinha Zemel (psicanalista), representantes dos Intercambiantes SP e BR tinham fome de realizarem uma atividade que unisse dois mundos tão separados : a iniciativa privada e os viventes de rua...

 

O João se juntou a muitos outros empresários: um grupo de arquitetos voluntários, a C&C, a Whilpool... e com o empenho e muito trabalho de todos chegamos a uma grande inauguração.

 

O CISARTE é uma espaço cultural que funciona na matriz  do MNPR, localizado no bairro da Bela Vista, São Paulo.,  e tem dois objetivos claros: promover  acesso aos direitos e informação as pessoas em situação de rua e  incentivar o cooperativismo popular  coletivo  por meio da realização de oficinas  e projetos temáticos voltados para cultura, arte, trabalho, assistência social, educação e  saúde, com objetivo de estimular  a multiplicação de  empreendimentos solidários para que as pessoas deixem as ruas.

 

Agora temos a cozinha escola como podemos ver pelas foto exposta,  mas seguimos trabalhando para conseguirmos os utensílios e iniciarmos os cursos profissionalizantes.

 

Um sonho precisa de muitos autores para se tornar uma realidade.

Contamos com você, junto conosco!

Junte sua fome à nossa fome! Inclusão, saúde, educação, trabalho,  autonomia e garantia de direitos.

 

Eroy Silva e Lurdinha Zemel

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

O caráter traumático da pandemia pela Covid 19

 

Arte: Pintura de Rosana Della Coletta

Celi Cavallari[1]

 

Na passagem para a terceira década do século XXI fomos surpreendidos pela pandemia do coronavírus, acontecimento que atravessa a história da humanidade e muda a rotina do viver humano no planeta. Em plena revolução tecnológica, a maioria não esperava agora ter o desafio de uma nova epidemia, sem respostas imediatas.

 Iniciamos 2021 com quase 200.000 mortos pela COVID 19 no Brasil, segundo os dados oficiais; e, passado o impacto inicial, estamos entrando em uma nova onda de crescimento do número de pessoas infectadas. As respostas do poder público foram insuficientes e, por vezes, contraproducentes para que fossem tomadas medidas preventivas adequadas; e é alto o grau de sofrimento da população.

Delumeau no livro A História do medo no Ocidente,[1] observa que a peste impõe

a “interrupção das atividades familiares, silêncio da cidade, solidão na doença, anonimato na morte, abolição dos ritos coletivos de alegria e de tristeza: todas essas rupturas brutais com os usos cotidianos eram acompanhadas da impossibilidade radical de conceber projetos de futuro, pertencendo a “iniciativa”, doravante, inteiramente à peste. Ora, em período normal, mesmo os velhos agem em função do futuro, tal como aquele de La Fontaine que não só constrói, mas planta. Viver sem projeto não é humano. No entanto, a epidemia obrigava a considerar cada minuto como um sursis e a não ter outro horizonte diante de si que não o de uma morte próxima.”

A falta de perspectiva, a ameaça à vida, a impossibilidade de saber quanto tempo vai durar, o isolamento social, o descuidado social e a instabilidade nos colocam em um patamar muito semelhante ao referido por Delumeau.

Para Freud, quando a adversidade do destino nos atinge, nos deparamos com sentimentos como angústia, desamparo e culpa, provocados tanto pelo perigo apresentado na realidade, quanto pela ameaça à nossa identidade.

A proporção de riscos, de medo, de luto e de dor associada à pandemia pode alcançar forte intensidade para o psiquismo e ser vivenciada como experiência traumática, exigindo grandes esforços para garantir o equilíbrio psíquico que é diferente para cada pessoa e para cada território.

A pandemia desencadeou rupturas e fomos jogados para uma condição mais regredida. De repente, ninguém pode sair de casa, houve diminuição de renda, situações de emergência, de risco e perdemos parte de nossa autonomia. Para as pessoas mais vulneráveis sem moradia, saneamento, ou que moram em situação de risco, a impossibilidade de cumprir as consignas preconizadas se traduziu no aumento do sentimento de desamparo e a diminuição de renda aumentou o risco à vida.

Negar também não é solução. Os países que fizeram isolamento social rigoroso e priorizaram ações de cuidado conseguiram resultados melhores em menor tempo, enquanto aqueles que não fizeram, apresentam maior número de infectados e de mortes, como é o caso do Brasil.

Quando a prioridade é da ordem da Saúde, seria importante que as forças políticas colaborassem e causassem menos stress. Em nosso país, tem ocorrido o oposto, diariamente recebemos notícias sobre disparidades políticas ou das forças de segurança que entram em choque com as ações de cuidado.

O adoecimento e morte continuam crescendo e os protocolos de tratamento e procedimentos médicos, por vezes, são tratados como se fossem apenas questão política e não dependessem do conhecimento científico. Parte do mundo iniciou a vacinação, enquanto no país as providências são lentas e quando governadores, como no caso de São Paulo, tomam medidas para proteger a região mais populosa do país, há interferência política federal e a esperança fica cada vez mais adiada.

Esses embates são mortíferos, as vivências relatadas por pacientes são semelhantes às situações de guerra, nas quais as pessoas se sentem sem saída, com crises de ansiedade e outros sintomas; o que favorece a piora das condições de saúde mental. Conforme a Organização Mundial de Saúde[2]:

 A pandemia está causando um aumento na demanda por serviços de saúde mental. Luto, isolamento, perda de renda e medo estão criando ou agravando transtornos de saúde mental. Muitas pessoas aumentaram o uso de álcool ou drogas e sofrem de problemas crescentes de insônia e ansiedade. Por outro lado, o mesmo COVID 19 pode trazer complicações neurológicas e mentais, como delírios, agitação ou derrames. Pessoas com transtornos mentais, neurológicos ou de uso de drogas também são mais vulneráveis ​​à infecção por SARS-CoV-2 e podem ter maior risco de doenças graves e até de morte. 

E, nesse momento, no qual há urgência em ampliar o cuidado em saúde mental de portas abertas, o governo federal reduz verbas para a necessária Rede de Atenção Psicossocial, que conta com profissionais especializados, enquanto aumenta verbas para Comunidades Terapêuticas de cunho religioso; além de revelar a intenção de revogar a reforma psiquiátrica e restaurar atendimentos manicomiais.

  Por outro lado, o governo estadual de São Paulo, propõe fechar a enfermaria psiquiátrica do Hospital Geral de Diadema, que é referência nacional de bons cuidados em psiquiatria e em desintoxicação para álcool e [outras] drogas e cumpre com qualidade seu papel na legislação vigente!

 Tudo isso contribui para o agravamento da demanda em saúde mental. Nos momentos disruptivos é fundamental evitar que novas rupturas ocorram, para que seja possível as pessoas recuperarem o equilíbrio emocional e psicossocial.

 

A telemedicina, os atendimentos psicoterápicos e de outras áreas de cuidado revelaram-se forte ponto de apoio e contribuíram para evitar complicações de saúde em geral. Assim como, a comunicação online possibilitou a diminuição da saudade de familiares e de amigos em isolamento social e foi um recurso para a realização de aulas, de grande parte de atividades profissionais e do resgate da arte. Embora insuficiente para atender as demandas da população de baixa renda e que necessite de ampliação, a tecnologia nos ancorou.

Precisamos resistir, elaborar esse processo traumático e sonhar para que possamos resgatar nossa integridade. O futuro depende também dos fragmentos da ruptura; o mundo não é o mesmo, a vida mudou, mas continua!

 

 


[1] Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica/PUC-SP. Conselheira da REDUC - Rede Brasileira de Redução de Danos e DH. Consultora Comissão de DH e Drogas da OAB-SP, membro ABRAMD/ RENFA/Rede Proteção contra o Genocídio e do Coletivo Intercambiantes BR / SP. 

 



[1] DELAMEAU, J. A História do medo no Ocidente. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.125.

 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A “nova” Lei de Drogas – A era do Grotesco!

 

Geliy Mikhailovich Korzhev-Chuvelev – fonte da imagem: https://www.megacurioso.com.br/artes/102068-este-mundo-grotesco-foi-imaginado-por-um-sovietico-contrario-ao-capitalismo.htm?img-11=


 

Rubens Espejo da Silva[1]

No dia 11 de abril de 2019 por meio do Decreto N° 9.761, O Presidente da República, Jair Bolsonaro, aprovou a “nova” Política Nacional sobre Drogas, substituindo a estratégia de Redução de Danos pelo Paradigma da Abstinência. O foco da nova política se dá na PROMOÇÃO e na MANUTENÇÃO da ABSTINÊNCIA (A palavra abstinência aparece 7 vezes). O Governo Federal, ao produzir este Decreto trouxe o que há de mais moderno em termos de atraso, a saber: o fortalecimento dos atributos de guerra às drogas em detrimento à descriminalização e legalização. Busca-se nas internações involuntárias em Comunidades Terapêuticas [2]a cura para os “drogados”; no endurecimento ao combate ao tráfico, a solução para os “bandidos”, e assim foi sancionada a PLC N° 37/2013, transformada na “nova” Lei sobre Drogas – Lei 13.840 de 05 de junho de 2019. Este tipo de Política Pública é muito mais do que um “simples” retrocesso, ela é a exclusão da diversidade no cuidado às pessoas que optaram por usar drogas. Ela é o que poderíamos chamar de produção do GROTESCO.  Gosto da definição do Grotesco feita por Michel Foucault em “Os Anormais”:

Chamarei de “grotesco” o fato, para um discurso ou para um indivíduo, de deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los. O grotesco ou, se quiserem o “ubuesco”[3] não é simplesmente uma categoria de injúrias, não é um epíteto injurioso, e eu não queria empregá-lo neste sentido. Creio que existe uma categoria precisa; em todo caso, dever-se-ia definir uma categoria precisa da análise histórico-política, que seria a categoria do grotesco ou do ubuesco. O terror ubuesco, a soberania grotesca ou, em termos mais austeros, a maximização dos efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz: isso, creio eu, não é um acidente da história do poder, não é uma falha mecânica. Parece-me que é uma das engrenagens que são parte inerente dos mecanismos de poder (Foucault, 2018, p.11).

            A produção do Grotesco é feita pelo Presidente Ubuesco, ao qual, por meio do seu poder, impõe não propõe, pune não acolhe, escolhe quem merece viver e quem morrer, - MAS E DÁI? - . Enfim, querem privar as pessoas ao direito de uso, bem como a qual estratégia de cuidado aderir, afinal para o Ubu e seus asseclas só existe o paradigma da Abstinência.

Penso sempre no exercício ético no cuidado às pessoas que fazem uso de drogas, até porque sou uma delas - revolto-me com a imposição da abstinência como Política Pública para todos -. Revolto-me com a própria abstinência, nas palavras do historiador Henrique Carneiro (2019):

É preciso lembrar sempre que a abstinência não é uma moderação, mas um excesso. É preciso moderar ambos, tanto o excesso como a própria moderação. Um excesso moderado, de qualquer forma, parece sempre melhor do que a moderação excessiva. É preciso temperar a temperança e moderar a moderação, para não cometer um paradoxo (p. 64).

A abstinência é o excesso do não! Entendo a Redução de Danos não como substitutiva das práticas tradicionais de internamento, mas sim um cuidado complementar, que pode restituir a possibilidade de cuidado de si e de circulação nos territórios. Não creio que devemos buscar a hegemonia de um tipo único de cuidado, mas sim, diversidade, assim como preconizava Antonio Lancetti (2014) – RD como ampliação da vida! - Acreditamos na RD não como uma impossibilidade à abstinência, mas um dos modos de se chegar a ela, caso a pessoa almeje tal triste meta. 

Referências

BRASIL. Lei nº 13.840, de 05 de junho de 2019. Altera as Leis nos 11.343, de 23 de agosto de 2006, 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, 8.981, de 20 de janeiro de 1995, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, 8.069, de 13 de julho de 1990, 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e 9.503, de 23 de setembro de 1997, os Decretos-Lei nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e 5.452, de 1º de maio de 1943, para dispor sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e para tratar do financiamento das políticas sobre drogas DF: Imprensa Nacional, 06 jun. 2019. Seção 1, p. 2. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13840.htm>. Acesso em: 18 jun. 2019.

 

CARNEIRO, Henrique. Drogas: A História do proibicinismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.

 

FOUCAULT, Michel. Os Anormais: Curso dado no Collége de France (1974-1975). 2. ed. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2010

LANCETTI, Antonio. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec, 2014.



[1] Psicólogo clínico,  mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 

[2] As comunidades terapêuticas já foram denunciadas por diversas violações de direitos humanos. Ver dossiê produzido pelo CFP - https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf

[3] Segue as notas do livro Os Anormais p. 25 para definição do adjetivo “ubuesco” foi introduzido em 1922, a partir da peça de A. Jarry, Ubu roi, Paris, 1896. Ver Grand Larousse, VII, 1978, p. 6319: “Diz-se do que, por seu carater grotesco, absurdo ou caricato, lembra o personagem Ubu”; Le Grande Robert, IX, 1985, p.573: “Que se assemelha ao personagem Ubu Rei (por um caráter comicamente cruel, cínico e covarde ao extremo).

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

“Reflexões sem dor”, de uma médica de família e comunidade, dolorida.

Lua Sá Dultra [1]


De dentro da sala, escuto as vozes das pessoas já conhecidas que chegam: 

-“Ô, Maria Bonita! Ô, Lampeona! Cheguei!”. Pela entonação e volume, enquanto escuto a pessoa que tá cá dentro, penso na ordem de chamada, e vamos nessa de tentar estratificar vulnerabilidades… Às vezes dá certo, muitas dá errado. Coisa boa foi realizar que ninguém educa ninguém e nem está ali pra isso. 

Entre uma pessoa e outra, a gente tenta agilizar aquelas coisas mais simples: adianta a coleta do escarro de um, corrige uma receita, entrega os medicamentos de outra, dá tchau pra um bebê que nasceu e você só conhecia de dentro da barriga. Volta o cara do escarro com xixi no potinho, pega novo coletor, explico: “não é xixi, é escarro”. Falhamos na comunicação. 

O corredor é o ponto alto. Nunca me furtei de ir ao corredor, gosto de ver o que está acontecendo: casais apaixonados que querem engravidar, casais brigando e gritando, um já almoçando porque conseguiu desenrolar a quentinha, uma outra discutindo com o porteiro porque quer entrar com a cachorra, uma ouvindo um radinho nas alturas, ainda outro ajudando o colega a organizar os medicamentos. Há também muita solidariedade e beleza. Quando minha avó morreu, muitas foram na unidade só me dar um abraço. Quando ‘apertam meu juízo’, digo que vou botar todo mundo dentro da sala e eles riem. Outros seguem xingando, e assim vamos. 

É tenso, na maioria das vezes é tenso. E agora, com tira luva, bota luva, passa álcool gel... ai me contaminei, volta tudo, tá mais tenso ainda. 

A realidade das pessoas que vivem nas ruas atesta sua capacidade extraordinária de resistir às situações mais adversas. Resistem às balas da guerra às drogas, resistem aos alagamentos da cidade, a infecções extensas, subagudas, à fome, à tristeza, às dores múltiplas do racismo. O que é um vírus diante disso tudo? “Eu sou micóbrio!”, assim me dizem. 

Morro um pouco e nasço um pouco, a cada dia, sendo médica de família e comunidade em uma equipe de Consultório na Rua. Que eu siga aberta a ouvir com o mesmo interesse uma história clínica difícil e um senhor cordelista que, no olho do furacão, entra na sala e diz que foi apenas me recitar um cordel. Afinal, “quem faz um poema salva um afogado”1, e assim a gente vai se salvando. 

Parabéns pra nós, neste 19 de maio de 2020, Dia Mundial da Médica e do Médico de Família e Comunidade. 


Referências Bibliográficas: 1 – Quintana, Mário. “Emergência”. In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 

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[1] Lua Sá Dultra é médica da familia e comunidade em Salvador - BA

Programa Atitude: uma outra possibilidade de cuidado

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